Chega o verão e chega o São João com as maiores festas profanas dos Açores. Uma comissão organizadora, coordenada pela Câmara Municipal de Angra do Heroísmo, contando com mais de 300 colaboradores, põe de pé as grandes festas Sanjoaninas, que resultam do trabalho de um ano a fio. Umas estão a acabar e logo as próximas são planeadas.
Todos os anos, por esta altura, Angra do Heroísmo, a cidade capital da Terceira, borbulha com um poderio de gente que desce da cidade da Praia e de todas as freguesias da ilha à bonita urbe. E há também mais gente que chega em catadupa ao aeroporto das Lajes ou ao porto da Praia, vindos de outras ilhas, da diáspora californiana e canadense e do continente português. Todos inundam a cidade. Vêm participar nas festas Sanjoaninas. Só assiste à festa quem quer, pois há sempre um papel vago para os que queiram nelas participar.
A Terceira é jocosamente conhecida por “parque de diversões dos Açores”, atributo que muito orgulha os terceirenses. Por isso, a sua festa não podia deixar de ser uma das maiores festas profanas do País. Estes ilhéus sabem fazer e viver a festa como ninguém. Os cerca de dez dias de Sanjoaninas são preenchidos na totalidade por múltiplas atividades festivas levadas a cabo pelos próprios terceirenses e seus convidados.
Os habitantes da ilha Terceira são quase sempre folgazões e normalmente elegem a boa disposição como condição sine qua non para viver em felicidade o dia a dia. E, sempre na informalidade, sabem receber como ninguém, diria mesmo que são anfitriões por natureza, fazendo do prazer de estar com os outros e da alegria a sua filosofia de vida. A porta de um terceirense está sempre aberta para quem vier por bem.
Por altura da festa, em cada casa, há uma alcatra, ou duas, ou três, a descansar no alguidar de barro, e quanto mais aferventada melhor fica de sabor. As alcatras servem-se à família e aos amigos, que à mesma mesa as saboreiam com gosto. São acompanhadas de massa sovada e de vinho, de preferência um bom tinto ou um jarro farto de vinho de cheiro.
As casas engalanam-se com colchas tecidas há séculos pelas avós. De cores muito fortes e puras, caem das janelas e das varandas estas tapeçarias antigas, e abanam serenamente na brisa fresca dos dias mornos de junho. As petúnias de muitas cores são obrigatórias e descem em cachos de vasos dispostos nas ruas e no entrançado das varandas. A cidade vibra com o som de dezenas de filarmónicas que vêm dos quatro cantos da ilha. Descem uma a uma a rua da Sé e outras ruas, por si só, sem outro propósito do que o de alegrar toda a cidade. Estonteante. A cidade é som. A cidade é música.
Na noite e no dia de São João, as filarmónicas tocam para marchantes, que, exuberantemente trajados, cantam, pulam e rodopiam, expandindo alegria, que contagia o povo que os ladeia, que aplaude e, por vezes, dança também, acompanhando a marcha da sua eleição.
Depois vem a espera de gado com os toiros das ganadarias da ilha, que são, neste caso, apenas seis e são soltos sem cordas em algumas ruas, devidamente tapadas para que os bichos se circunscrevam apenas a uma determinada área e não invadam outras artérias da cidade. E há sempre um rapaz mais afoito – capinha como lhe chamam na ilha – que se atreve a enfrentar o animal, para logo fugir, trepando a uma árvore ou mergulhando numa janela aberta, escapando, assim, “como é dado” à fúria da besta entre gritos e gargalhadas da multidão. Nas ruas, estão por tradição os homens. As mulheres refugiam-se em janelas e varandas e atentamente mantêm uma mesa sempre farta de muitas iguarias, favas-de-molho-de-unhas; ovos-cozidos-e-ou-recheados; morcela-e-linguiça-fritas; torresmos-de-cabinho; batatas-com-malagueta e muito mais…Tudo muitíssimo gostoso e regado a cerveja fresca, pois a tarde costuma ser quente e de muito sol.
Todos os dias há desfiles e há uma rainha da festa que, aos olhos de quem a elege, é a mais bonita da cidade, da ilha ou mesmo dos locais da diáspora açoriana, e que, de cima de um camião totalmente invisível por estar decorado a preceito, acompanhada por pequenos pajens e por damas de honor, acena, altiva, e sorri à multidão, deixando a rapaziada pretendente, em idade de se apaixonar por tudo quanto mexe, de baba na boca e de olhos em bico. Assim costuma ser todos os anos, mudando apenas as raparigas, as crianças, a indumentária e a decoração dos camiões que percorrem as ruas principais da cidade.
Há desfiles todos os dias sobre temas variados e para públicos diferentes. Há também, em simultâneo, concertos e bailaricos em diferentes pontos da cidade: na Praça Velha, no Cais da Alfândega; no Alto das Covas e no Cerrado do Bailão. Grupos musicais como os Gipsy Kings, David Carreira, Jimmy P e Kevu, abrilhantam este ano as Sanjoaninas. Outros houve em anos anteriores de nível nacional e internacional.
À noite, a malta janta nas tascas, improvisadas para aqueles dias e distribuídas pelas ruas da cidade, manjares típicos regionais, como os chicharros, os torresmos e os enchidos e não falta a mariscada do mar da ilha como as lapas e as cracas, as lagostas, os cavacos e as sapateiras, acompanhando as sangrias, a cerveja de pressão, que é muita, e o vinho. Bebe-se a valer nas Sanjoaninas, sobretudo na noite de São João. Quando acabam as marchas, saltam-se fogueiras e comem-se sardinhas-e-pão-de-milho na rua do santo deste nome.
Os fins de tarde, em geral soalheiros, são passados na praça de touros de Angra, onde toureiros portugueses e espanhóis de alto gabarito, apeados ou montados em cavalos de alta escola, lidam touros dos mais conceituados ganadeiros terceirenses, como o são Rego Botelho e José Albino, entre outros. Depois vêm os forcados da Tertúlia Tauromáquica Terceirense, o Grupo de Forcados Amadores do Ramo Grande e outros, gente que mostra valentia em arena pegando pelos cornos autênticos “tratores” de cerca de quinhentos quilos de peso. Há também uma tarde das Sanjoaninas para a tourada à corda. É sempre no Porto de Pipas, onde os animais, mesmo amarrados e puxados pelos “pastores”, conseguem investir com a sua força bruta sobre os mais atrevidos que, para se safarem, em última instância, se atiram para a água da baía, às vezes com touro e tudo. E os touros nadam misturados com os homens que se refugiaram na água. Deus nos livre de tal sorte, penso eu sempre que assisto ao regalado banho do touro e à aflição dos forçados banhistas. E para que a festa brava não se fique pelos mais velhos, para que se estenda aos mais novos que um dia darão seguimento à tradição, há uma manhã de espera de gado para os mais pequenos com tourinhos, também eles pequenos, na Rua de São João, o santo que dá nome à festividade.
A encerrar a festa, temos o fogo-de-artifício, que, em noite estival, quase sempre enluarada, voa sobre a cidade património mundial da humanidade, iluminando as muitas fachadas das casas, igrejas e conventos seculares da cidade de Angra, que desliza docemente para o Atlântico, altiva na esquadria quase perfeita das suas ruas muito belas e serenas.
A ilha rejubila mais uma vez este ano, entre 21 e 30 de junho, titulando esta festa “O Regalo do Rei e da Gente” como forma de humanamente recordar e de justamente enaltecer e reabilitar o infeliz rei D. Afonso VI, cujo mandato orgulhosamente conheceu o final da Guerra da Restauração e o reconhecimento por Espanha da independência de Portugal. Afonso foi destituído pelo seu irmão mais novo, D. Pedro, Duque de Beja, que o declarou incapaz, lhe anulou o casamento com sua mulher, Maria Francisca de Saboia, e com ela se casou, assumindo-se como Regente do Reino.
Afonso esteve aprisionado a ordens de Pedro, no Forte de São João Batista, sobranceiro à velha urbe, de 1669 a 1674. Daí, o bem-sucedido cartaz destas grandes festas Sanjoaninas 2019 o mostrar, sorumbático, sentado no Forte, a observar, de longe, a desejosa cidade, que nesse local o imortalizou erigindo-lhe uma estátua junto ao Pico das Cruzinhas. Se D. Afonso VI se passeava pelo Monte Brasil, vulcão encerrado também ele pelo Forte e hoje parque natural de extraordinária beleza, o rei teve sorte na sua pouca sorte de tão injusto recolhimento.