Dacar, Senegal. Há uma poeira no ar, será da areia que cobre o chão? Desviando da estrada principal, as ruas cobrem-se dela que se levanta a toda a hora, olhos que piscam de aflição de quem acabou de chegar ao novo destino. À noite, com a brisa e o vento do mar, parece que a poeira se acalma. Apenas não se vê. O chão do terraço deixa constantes marcas, de pés número 36, de despojos de corvos, de camadas de pó da cor das laranjas.
Daqui do sétimo andar, quando o ar está de feição, vê-se o mar e uma ilha onde construções desalinhadas se encavalitam a escassos metros da praia dos pescadores e de um dos spots de surf. À noite, daqui do sétimo, vêem-se as carroças, alinhadas junto ao campo de futebol, desatreladas dos cavalos, no descanso mesmo ali ao lado. Uma dupla difícil de ultrapassar durante o dia, quando troteiam nas estradas, a carregar materiais de construção, vigas que ameaçam a todo o momento espetarem-se no vidro do carro da retaguarda, ou velhos electrodomésticos, baldes com gasolina e o que o que mais houver para transportar. Competem com táxis amarelos a cair de velhice ou descuido, com janelas que já não sobem nem descem, sem filtros, entra o pó, a areia, o ar quente a misturar-se nos cabelos e nas peles dos ocupantes. E os cabritos e as mães deles, omnipresentes nos bairros, nos terraços, nas varandas. Não dá para ganhar afeto, sob o risco de um dia para o outro deixarem de berrar/balir, por conta de algum sacrifício. Dar banho a cavalos e cabras não é coisa de expressão, é real, é no mar, é no quintal, é em frente às casas, nos bairros, haja vagar e água.
As noites trazem um ar e um vento fresco, quase difíceis de suportar só com o saco-cama de verão que me acompanha há mais de cinco países de residência fixa.
O John, amigo e amor de há mais de 20 anos, voltou a conectar-se. Horas de conversa e de mensagens pela noite dentro para pôr as viagens, as alegrias e as tristezas em dia.
Ao amanhecer, o chamamento ecoa das mesquitas, e vai-se repetindo num total de cinco vezes, numa melodia que ajuda a marcar o ritmo dos dias.
O dia amanheceu laranja. Difícil de dizer se o sol mudou de cor, mal se vê. E o laranja manteve-se, aumentou até de tonalidade, até não se ver nada a poucos metros dos olhos, já exaustos de piscar. A minha primeira tempestade de areia, soprada lá do Saara, com passagem pela Mauritânia.
Cinco viagens de trabalho estão alinhadas nos próximos dois meses para percorrer sobretudo países costeiros da África Ocidental. Mas primeiro Goma, na República Democrática do Congo, nas vésperas de se declarar o fim de mais uma epidemia de ébola. Por pouco lá ficava, só tive tempo de regressar antes do fecho dos aeroportos para me dedicar a tempo inteiro a um outro vírus. Voltando às tais missões de trabalho planeadas na região, todas adiadas.
Durante o Ramadão, os sons dos altifalantes ganham outra força e competem pela hegemonia, bem audível daqui do sétimo. As cerimónias diárias nas mesquitas foram anuladas e as celebrações ficaram fechadas entre quatro paredes, em casa. Nas horas vagas, os altifalantes dos minaretes gritaram em alguns locais conselhos de prevenção para evitar a pandemia.
Sete reuniões e 163 emails lidos e respondidos num só dia, numa competição individual para tentar dar sentido às horas intermináveis à volta do bicho de 2020. Ganhei-me quase dia sim, dia sim, e cansei-me de contar tal absurdo e auto-tortura.
Na busca desesperada de endorfinas, e ao fim de dois meses (ou serão três?) sem correr, faço-me à estrada, à areia e à poeira, e lá vou a custo e a cuspo. Música em altos decibéis enfiados nos ouvidos, gosto duvidoso, talvez, mas com letra que, pela primeira vez em vários meses vai para além das cantigas com refrão “lavar as mãos com água e sabão”.
As noites agora são abafadas, pegajosas. O saco-cama há muito que já está engavetado.
O John morreu. Assim, sem mais nem menos. Foi a enterrar no dia do meu aniversário. Numa aldeia perdida em Espanha.
Num piscar de olhos, já passaram seis meses desde que me mudei para Dacar, no Senegal.
Depois de outros tantos dois meses (ou serão três?) e mais auto-promessas falhadas para ir voltar a suar em endorfinas, ponho as sapatilhas, auscultadores e vou pelas estradas de areia e poeira, passo as cabras e os cabritos, desvio-me dos cavalos, abrando de medo com os rafeiros, avisto um ou outro camelo, passo pela escola corânica da esquina, e arrasto-me numa corrida lenta até morrer na praia. Respiro fundo. Olho o mar… e vejo o(s) meu(s) (de) Ovar.