Ponto 1
Há muitas luas – não vos vou dizer quantas – fui mergulhar sozinho no meu barco e fundeei a uns 400 metros da costa. Os meus mergulhos solo são q.b. conservadores para voltar em segurança e envolvem por regra mergulhos circulares em que volto à superfície pelo cabo de âncora. O mundo ao qual voltei estava totalmente transfigurado; um nevoeiro de cortar à faca descera sobre o mar e o único ponto de referência visual era, subitamente, eu e o meu barquinho.
Nessa dia não levara bússola nem GPS, mas tinha certezas – senão perceptuais pelo menos conceptuais – suficientes para “saber” onde estava terra. Quatrocentos metros até à vertente rochosa que recorta aquela costa, a corrente (parecia-me que) não tinha mudado, era uma questão de apontar o barco na direcção certa e, devagarinho, haveria de voltar a Portugal. Fui andando, andando, com o motor pouco acima do ralenti, fazendo pequenos cálculos de cabeça do quanto tempo deveria mais ou menos navegar para fazer os 400 m. O nevoeiro instala-se quando as nuvens descem e aborrecem-se por ali por falta de vento; o mar cheio de vida e de verde do qual acabara de sair, era agora estático, fechado, com a liquidez pouco convidativa do mercúrio, como se o nevoeiro tivesse diluído a fronteira entre estes dois mundos.
Em breve apercebi-me de que não ia na rota certa, ou que os meus cálculos de cabeça estavam gravemente em falha. São poucas as certezas iniciais numa situação destas; o mundo visual que é ali regra geral tão vasto que nos apercebemos da curvatura do planeta fica reduzido a pouco mais de um metro e, em certos ângulos de luz, a fronteira entre os cinzentos da água e do nevoeiro esvanecem-se por completo. Todas as certezas desaparecem também; com elas, começam as Grandes Dúvidas. Navegar, mergulhar, na costa Atlântica implica que quando olhamos para terra, temos o Oceano inteiro nas nossas costas. Que fazer quando não sabemos em que direção fica terra? E os cálculos de cabeça “tempo x velocidade = distância percorrida” estarão bem? E quando falham, qual é o primeiro absoluto que se perde? A noção do tempo? A noção da velocidade? A noção de nós mesmos?
É aqui que nós estamos.
Quando se tornou totalmente claro que na melhor das hipóteses estaria a navegar aos círculos e que na pior das hipóteses ia a caminho de Nova Iorque, parei e fiz o que se deve fazer sempre nestas circunstâncias: lancei a âncora – com o credo na boca de que a sentiria bater no fundo (nesta costa, o mar mantém-se aos 30 e tais metros por algum tempo e cai de repente para profundidades abissais), o que afortunadamente aconteceu – e preparei-me para esperar até que o nevoeiro passasse. E passou.
É aqui que nós estamos.
Ponto 2
Sempre gostei de histórias e da forma como nos ajudam a visualizar outras realidades que não temos o privilégio de conhecer. O que nos separa dos outros animais não é a fé ou a tecnologia, mas a capacidade de contar (e ouvir) histórias, ou “estórias” – para recorrer a uma diferenciação em desuso – por meios que nos movem a complexa maquinaria da percepção. Da arte, a melhor música, a melhor pintura, a melhor fotografia (estática ou em movimento) conta sempre uma estória transcendente, no sentido em que transcende a nossa realidade imediata. A melhor arquitetura, a melhor engenharia, a melhor geologia, astronomia, biologia, também. As melhores estórias de formato “pronto-a-utilizar” (a literatura, essa grande ferramenta “pós-pré-histórica”) mudaram, inequivocamente, o mundo para muito melhor.
Por isso enquanto cresci, dividi as pessoas entre as que sabem contar estórias e as que pouco ou nada têm para contar. Rapidamente criei dois grupos etários distintos: os mais velhos que naturalmente tinham muitas estórias para contar; os mais novos que naturalmente não tinham ainda muito para dizer. O meu amor incondicional pelos mais velhos – e em particular pelos mais velhos muito vividos – passa pelo reconhecimento de que transportam em si mundos que, uma vez perdidos, nunca mais voltarão. Ser humano é reconhecer que esta hereditariedade é pelo menos tão importante como a hereditariedade biológica.
O novo coronavírus abateu-se sobre nós de forma inesperada e pouco se sabe ainda sobre ele. Mas foi imediatamente claro que iria afectar de forma desproporcionada os mais frágeis, os mais velhos. Já me custa muito a engolir a forma como a nossa sociedade se habituou a tratar institucionalmente os iddosos quando – após a Segunda Grande Guerra e com o advento do neo-mega-urbanismo – as casas multigeneracionais desapareceram, os começámos a arrumar longe da vista, descartando os seus mundos e as suas estórias (na natureza humana, nada me desperta mais os instintos assassinos que ouvir alguém infantilizar a conversa para falar com os mais velhos).
Quando – ao saber que o vírus iria dizimar a nossa população de terceira idade – em vez de mobilizar recursos para os defender os deixámos morrer em solidão dentro dos seus “lares”, descartámos a nossa humanidade.
É – também aqui – que nós estamos.