Normalmente, isto é, antes da pandemia, quando ia a ouvir radio no carro, depois das notícias a cada hora, vinha sempre sistematicamente a longa ladaínha de todos os problemas de trânsito em todas as autoestradas que cruzam o estado de Hessen, onde moramos: “Na A5, cruzamento tal, 6 km de fila; Na A3, depois do nó não sei quantos, trânsito lento; Na A67, perto da estação de serviço, estão animais na berma da estrada, conduza devagar; acidente na A7 com 10 km de fila… ” pelo menos uns 5 minutos disto… percorrendo todos os cantos do estado onde as coisas andam entupidas…
Ontem, depois das notícias, disse o locutor: “E agora o trânsito: Não há nada a reportar…”
Não havia um único engarrafamento, acidente, problema, em qualquer sítio no estado inteiro.
Com toda a gente em casa, com os carros parados, com os aviões, que daqui de Frankfurt partem e chegam a todos os minutos, aterrados, está um silêncio e uma calma saborosos. O tempo parece que desacelerou, os vizinhos sentam-se ao sol nas varandas, alguns vão dar uma corrida, ninguém tem pressa.
Com peso na consciência, tenho estado eu, nestes tempos, porque sabendo quanto sofrimento esta crise tem gerado a tanta gente: pessoas que adoeceram gravemente, pessoas que perderam familiares, pessoas que perderam o trabalho, pessoas que passaram a viver precariamente e com as perspectivas futuras comprometidas, pessoas que vêem os negócios e os investimentos a irem pelo cano abaixo, pessoas que não podem exercer a sua profissão, pessoas que têm que lidar com situações de conflito e violência grave no círculo familiar, e pessoas que sofrem de solidão no isolamento… para mim, estes dias têm sido maravilhosos.
Tenho, obviamente, a sorte de ter um trabalho seguro, pude vir para casa e continuar a fazê-lo, tenho uma família saudável e o nosso tempo junto é delicioso. Os meninos estão felizes, sem stress de levantar cedo para ir para a escola, sem stress de passar horas à espera de serem recolhidos, sem stress de ter que ter trabalhos de casa feitos para o dia seguinte. Brincam uns com os outros, horas a fio sem brigar. Saem connosco a passear nos bosques vazios e estão felizes a brincar nos riachos. Comem em condições – fazemos as refeições juntos. Lêem. Vêem as séries que gostam. Jogamos jogos de tabuleiro ao serão. O tempo lá fora está de Primavera, quase a parecer Verão. O céu está claro, quase cristalino. As flores explodiram em mil cores, os pássaros berram estridentes. Temos um pedaço de jardim em torno da casa que pudemos usufruir, e fazêmo-lo todos os dias. Pode ser ingénuo, e pode ser que nada seja seguro, e que a crise económica que aí vem arrase consigo tudo o que pensamos ser estável, mas será mesmo necessário que seja assim?
Com peso na consciência, porque dentro de mim, algo deseja ardentemente, que algumas coisas desta crise, se mantenham como estão. Algo me diz que a maluqueira dos dias de antes, a pressa, o stress, o despachar, o tem que ser assim, afinal não tem…
Em tão pouco tempo (e não me refiro a quem lida com as graves consequências da crise, mas aos outros) conseguiu-se reduzir a vida ao essencial, e conseguiu-se um novo balanço que é mais saudável a quase todos os níveis, incluindo para o planeta. Os níveis de poluição baixaram drasticamente – a níveis que os governantes asseguraram só ser possível reduzir em décadas – os rios e lagoas, onde antes se navegava intensamente, como em Veneza, ficaram limpos e transparentes. Alguns animais voltaram a espaços de onde estavam practimente banidos e prosperam.
O que tínhamos até agora era uma economia, cujo propósito final, não era a qualidade de vida das pessoas, mas o bem estar da economia em si. Uma economia que vivia em função de si própria e para si própria. Trabalho e mais trabalho para que a economia funcione e cresça, para pagar as dívidas criadas para se gerar mais economia. Uma economia de baratas tontas, susceptíveis de ficarem doentes. Uma economia de esgotamentos, de depressões, de suicídios e de más condições de trabalho.
Pode ser ingénuo, mas fará ainda sentido que seja necessário trabalhar para subsistir? É assim tão necessário que toda a gente faça a sua parte de trabalho para ser aceite e incluido na sociedade, e não seja um peso para os outros? Enquanto o trabalho for um castigo e uma necessidade, talvez sim. Se eu tenho que dar o litro, porque é que os outros hão de fazer nada? Há uma injustiça inerente ao facto de uns viverem às custas dos outros. Mas esta sociedade é tão rica, e produz tanto, que forçar toda a gente a contribuir implica que muito é produzido para nada, que há uma enorme pressão social sobre os desempregados para se tornarem “úteis”, e que se esgotam os recursos do planeta, sem com isso se melhorar significativamente a qualidade de vida das pessoas, mas a criar mais e mais lixo, para tornar mais pessoas doentes.
Por essas razões, eu sou a favor do Rendimento Básico Universal (sem o estigma do Subsídio de Desemprego). Acho que somos tão prósperos como sociedade, que podemos criar as condições para todos terem o mínimo para viver dignamente (casa, aquecimento, comida e roupa) sem ter que exigir trabalho em retorno. Dessa forma o trabalho passa a ser uma escolha e o cumprir de um desejo de ser útil aos outros ou de ser bom em algo. As pessoas têm mais oportunidade para se educarem e treinarem, e escolherem fazer as coisas que as fazem mais feliz, ao mesmo tempo adicionando um complemento ao rendimento para todos os extras que querem (férias, gadgets, noitadas…).
E esta vida de migrantes diários de escritórios que entopem autoestradas e migrantes voadores de negócios que enchem os céus de aviões, claramente podemos deixar para trás. Está provado que tele-trabalho funciona para a grande maioria das empresas e serviços e não precisamos de continuar a poluir diariamente com os nossos tubos de escape, como se não houvesse escolha. Não precisamos de continuar a viver como se não houvesse amanhã. Podemos viver mais devagar, mais saudáveis, e ter mais tempo de qualidade com as pessoas que mais amamos. Se assim fosse levantar-se-ia o peso da consciência…