Neste momento de reflexão, sinto-me grata pela distância da Europa, ainda que de coração apertado pelos pesadelos que se vão vivendo um pouco por todo o mundo.
Também aqui já começou a quarentena que une, de uma forma bizarra e ingrata, milhões de seres humanos. Prevê-se que o pior está para vir.
Há duas maneiras de navegarmos estes tempos estranhos e incertos. Contando os dias para que tudo volte ao normal, ou fazendo a ginástica mental e emocional necessária para aceitarmos que este é o novo normal e respondermos da melhor forma possível a este momento ingrato na História.
Há dias em que dançamos entre o medo e a calma. Faz parte. Somos humanos.
Não é fácil, quando tudo à nossa volta parece estar do avesso, sem solução rápida à vista. Mas esta é precisamente a altura em que a resiliência que nos é inata tem que imperar. Para que tiremos as lições que pudermos para construirmos um futuro melhor.
Ainda que provocada por circunstâncias surreais e de gosto amargo, esta pausa global forçada traz consigo uma oportunidade que, sem nos apercebermos, há muito desejávamos. Uma pausa no ritmo frenético a que vivemos, e que parecia impossível de travar.
Pelos cafés do mundo fora, há anos que temos as mesmas conversas. Começam com estas palavras: “Um dia…” e
terminam com;
… deixarei este trabalho que me traz tanto
stress.
… passarei mais tempo com os meus amigos.
… quando atingir a próxima
meta, terei mais tempo e paciência para os meus filhos.
… quando as coisas estiverem mais calmas, farei aquele curso.
… tentarei aquela actividade nova.
… terminarei aquele projecto em minha casa.
… pegarei novamente na minha guitarra.
… voltaremos a ter tempo um para o outro.
… dedicarei mais tempo e energia ao nosso romance.
… terei mesmo que começar a fazer exercício físico e comer melhor.
… dedicarei mais tempo ao que me dá prazer.
Mas um dia rola atrás do outro, levando-nos, anestesiados pelo peso de listas infindáveis, ao mesmo sítio onde começámos. À correria que nos vai tirando, muito lentamente (não se vá notar) o brilho dos olhos e o fogo à alma.
É esta a natureza do sistema económico que nos programa para a eficiência, a produção e o consumismo. Tudo revolve à volta de dinheiro, poder e posição social.
Neste sistema somos nós as peças, alimentadas cuidadosamente pelo estímulo constante, bombardeadas por mensagens que nos convencem que não somos e temos o suficiente, e a promessa vazia de que a compra do próximo elixir tornará tudo melhor.
Dia após dia, entramos na esteira, em busca incessante da próxima recompensa. Só mais uma. Tem que ser. E aí sim, poderemos relaxar.
Muitos de nós sentimos que esta dança nos separa do que é realmente importante, mas como podemos parar, quando o mundo inteiro está na mesma corrida? Haverá alternativa melhor?
E assim, de repente, em jeito surreal, o mundo pára e o dinheiro, a eficiência e o consumismo são retirados da lista de prioridades. O sistema que nos aprisiona dá-nos tréguas e obriga-nos, pela nossa saúde, a voltarmos às bases.
De um dia para o outro, deram-nos o tempo cuja falta serviu para desculpar tanta coisa.
Agora temos tempo para fazer sopa. Para nos cuidarmos. Para ligar aos amigos e à família. Não há pressa para estamos em lado nenhum. Temos tempo para apreciarmos as casas que nos custaram tantas horas no escritório, para saborearmos o café. A criatividade voltou a visitar.
Mas esta pausa traz um pedido urgente, antes que a oportunidade nos escape. Que questionemos quem somos quando tiramos o dinheiro e as distracções da equação. Quando não há ninguém para impressionar. Será que faríamos as mesmas escolhas? Subscreveríamos ao mesmo estilo de vida?
Aqui na Nova Zelândia entrámos na segunda semana de quarentena. O nosso passo de vida é mais lento por natureza, mas, até por cá, se sentem diferenças refrescantes. O ar tem um cheiro diferente. Nas nossas caminhadas pelo bairro vemos mais pássaros, mais gente a caminhar. Está tudo mais calmo, sem o movimento constante dos veículos que nos transportam de obrigação em obrigação.
O bairro tem mais vida, ouvimos os vizinhos a desfrutarem das suas casas, dos seus quintais, das suas famílias. Há um silêncio delicioso à noite.
Em camera lenta é difícil ignorar que as coisas mais simples são, sem dúvida, as que nos trazem a satisfação que procuramos. Talvez seja esta a oportunidade que esperávamos para mudarmos a direcção das nossas vidas.
Navegamos tempos incertos, difíceis de compreender e traumáticos a vários níveis. Vem aí uma recessão económica que terá consequências sérias para milhões de seres humanos. Talvez estejam reunidas as condições necessárias para um novo paradigma de vida emergir.
Talvez seja esta a chance de vivermos, colectivamente, uma vida mais simples e descomplicada.
Mandaram-nos ficar em casa para salvarmos vidas. Quem sabe se entretanto não salvamos também a nossa.