‘Estrada, árvore, a noite’. Vladimir e Estragon esperam alguém. A conversa é seca, pouco relevante, sem que se permita descortinar que relação mantêm. Não sabemos exatamente quem e esse alguém por quem Vladmiri e Estragon esperam no escuro. A chegada de Godot, a personagem que nunca surge e que salvará Vladimir e Estragon da situação em que se encontram, cria uma espécie de sufoco, um stress comprimido, uma solidão impregnada no tempo da espera. Imagino sempre o Planeta que habitamos como um corpo que se sente como as duas personagens principais descritas por Samuel Beckett em “À espera de Godot”. Somos o Homem que nunca surge, um Dom Sebastião, e essa ausência provoca no corpo uma ebulição efervescente.
Desconhecer o estado de sítio do corpo engorda o lucro dos que fingem desconhecer o estado de sítio. Na vida do Planeta a personagem que nunca chega pareceu surgir numa manhã de nevoeiro, mas o Sebastianismo afinal é apenas mito, descobriu o corpo, e a ansiedade da espera cresceu-lhe nas entranhas. É verdade, as palavras começaram a chegar à boca: alterações climáticas. Mas como bom Portugal dos Condes de Gouvarinho, desenhou-se um teatro no mundo fantasioso e ficcional universal que esquece a urgência ambiental. Os perigos do vírus Facebookiano surgiram como tentáculos para convencer o mundo linguisticamente, através de cliques, que a mudança chegará se se oferecer a simpatia através de um ecrã. Mas esta doença piora: vira verosimilhança, numa dança e contradança com o corpo do Planeta no centro do baile, engolido para um vórtice de inércia.
Para que o corpo não caia aos pedaços é preciso que as mãos invisíveis que acariciam as redes sociais não se percam em reticências. Resignamo-nos ou escolhemos agir? Sabe, um clique e uma partilha não salvam um corpo em chamas. Está a ouvir? Nós temos o poder. Podemos passar o resto da vida a acreditar que as nossas acções no mundo virtual alteram a realidade ou olhar em frente e escrever um futuro espelhado em Eça de Queirós, que dizia que curiosidade é o “instinto que leva alguns a olhar pelo buraco da fechadura, e outros a descobrir a América.”. Sim, podemos descobrir a América. Já se questionou como é possível termos alcançado um ponto na História em que o mundo se encontra no topo do poder tecnológico e do acesso a informação e, no entanto, as pessoas continuam a ver-se ao espelho como seres incapazes de fazer estalar a mudança? A falha da sociedade está em ver-se despedaçado no fim do precipício ainda antes de se ter atirado. Mas, ainda há tempo.
Veja, como poderá um cego de nascença crer somente vendo se nunca enxergou? Se necessário for esperar para colocar os dedos nos cravos das mãos, como São Tome necessitou, temo que as palavras de Ruy Belo ecoarão tardiamente em nós: “ninguém, no futuro, nos perdoará não termos sabido ver”. As alterações climáticas instalaram-se como doença no corpo e as metástases crescem. É esta, sim, a grande batalha da nossa geração. É esta, sim, uma corrida contra o tempo e, ouça, os cliques no Facebook não param o relógio. Escolhamos ser todos Rastignac de Balzac para salvar o corpo. Deixemos de viver só com a pele num cérebro instrumentalizado, alienado. Gonçalo M. Tavares teima em estar certo, “Pensar é ainda um dos actos de resistência do ser humano”.
Como escreveu Aquilino “Tudo no mundo é uma cadeia, hoc propter hoc. Sucedemo-nos, mudando apenas de forma. A essência persiste única, inalterável até à consumação dos séculos”. E é exactamente isso que o corpo teme. Teme que Godot nunca surja. Porém, o final da história está no poder de quem a elege. Você!