O tempo aqueceu, estão 4 graus, a neve derreteu, passeio o cão de t-shirt. Os avisos de avalanche iminente, possibilidade de avalanche, ocorrência de avalanche, posts de avalanches filmadas de telemóvel, multiplicam-se nas notícias. Nas bermas das estradas começam a aparecer flores confusas, que não olharam com atenção para o calendário e por isso resolveram florescer no pico do inverno, pensando que é primavera. É o aquecimento global, versão norueguesa.
Lá fora, no mar, a migração de arenque em direcção ao sul está em curso e é seguida com atenção pelos pescadores, por mim, pelas orcas, pelos bacalhaus. A neve que derreteu nos últimos dias descambou escarpas abaixo e arrefeceu o mar, cuja temperatura baixou para valores dramaticamente próximos do zero. Sempre que posso saio de kayak, à procura das orcas; sei que há dois tipos por aqui: as que comem focas e as que comem arenques. Pareço uma foca.
É um tempo confuso – as tardes de domingo são por vezes passadas no mar, outras vezes envoltas no bucolismo da floresta , mas a ouvir rap (Logic, com mensagens de felicidade caduca e perseverança perene e a variedade tonal de uma pedra de granito). É a taxa cultural que pago por ter filhos adolescentes. Tolerância zero para música desprovida de angústia social. Resta-me esperar que – mais à frente – repesquem os anos de imersão em jazz e clássica com que os bombardeámos durante década e meia. Isolo-me eu mesmo no mundo de gratificação melómana instantânea do Tidal. A música passou de bem público para actividade íntima e privada. É quase onanística, a forma como consumimos música nos dias de agora.
Choveu a noite toda, violentamente. Está uma poça de água lá fora, a pedir para ser pisada.
A maré sobe, ajudada à superfície por um vento que sopra, “dizem eles”, de Espanha. Não sabem estes noruegueses o que dizemos dos ventos de Espanha (e parecem querer descartar que o vento não se forma em espanhas, mas em oceanos, e que para chegar aqui vindo daquela direcção poderia chamar-se “vento de frança” ou “vento de inglaterra”). Enquanto o aquecimento global não resolve isto, são múltiplos os efeitos nefastos de viver no inverno frio e escuro a poucos quilómetros do círculo polar. A minha estratégia continua a ser embrulhar tudo no papel festivo do exotismo –um exercício no fio da navalha – por isso não percebo bem a angústia que a repetição cíclica do Inverno provoca nestas cabeças. É que em Portugal contabilizamos poeticamente a idade com base no número de primaveras. A contabilidade aqui é invernos. O Árctico e a Antártida podem derreter completamente, mas a maré não chega à nossa estrada de acesso a casa.
De Portugal chegam hoje melhores notícias – as empresas vão ser multadas se pagarem diferencialmente com base no género, ou seja, se continuarem com esta merda de pagar às mulheres menos que aos homens, no mesmo nível de escalão profissional. Mostro por aqui isto com orgulho, muito ajudado pelo conceito de “Portugal se estar a colar à Islândia”, que é o benjamim da cultura nórdica. A Islândia é a terra mais interessante do planeta – socialmente está claramente muito à frente; os islandeses são poucos habitantes que bem se podem deitar a fazer as experiências sociais que lhes aprouver. Por outro lado, o meu Portugal afigura-se-me também cada vez mais interessante: um país historicamente inovador, que se deixou arrastar durante séculos pela lama do antigamentismo, que passa da cauda da Europa para o grupo dos países “à frente”, com problemas graves de identidade (já repararam que ainda não se consegue falar do salazarismo, da guerra colonial, da catástrofe humanitária que foi a descolonização, do racismo latente, do sexismo vigente)… tanto por fazer, meudeus…