Desfaço a curva e o relógio abranda. Foi-se a selva urbana, os fatos e os saltos altos que concorrem com as buzinas na hora de ponta Estado-unidense. Se prestar atenção ainda ouço a água que cai no lavadouro, agora mais vazio e não é pelo frio. Da minha rua vejo o mundo, mas o mundo não me vê passar. O meu melhor amigo de infância voou e não voltou. A casa está vazia e as escadas despidas do corpo da mãe. A Suíça roubou uns quantos, a França outros para o Agosto dos retornos, que as raízes dos troncos jamais deixam a terra onde nasceram. Volto à minha rua para a vida ver passar.
O Manuel foi-se num último suspiro trincando uma rabanada, pouco tempo depois do outro Manuel metros acima da sua casa ter sucumbido à saudade da mulher que partira, ainda o calendário quase não havia mexido. E o Fernando corre, sem conseguir correr, quando ouve falar de morte, antes que a morte o apanhe nas artimanhas da rua que sobe e desce todos os dias até ao café sem nome. Bate cartas numa mesa menos barulhenta do que aquela que se esconde debaixo de árvores com vista para o rio, de onde as vozes de quem perde ecoam rua fora.
Nem as badaladas altas do relógio da capela de azulejos azuis, que a maioria já não ouve bem se o volume baixar, são capazes de abafar as arrufos com prazo de validade terminado após o almoço do dia seguinte. Amuam e escapam-se para o ainda novo passadiço que desbrava terrenos verdes, acompanhando o rio hoje castanho, ali onde outrora apanhávamos pinhas para lhe sacar os pinhões comidos à lareira aberta. Quando parti da minha janela havia-se erguido um edifício branco, no outrora longo campo abandonado que corria até ao rio carregado de água onde dávamos braçadas nos dias quentes. Foi-se quase toda a água. Foram-se as crianças. Nasceu um pequeno centro cultural onde refreia o dinheiro, mas se espevita a vontade.
O Jaime já não se senta na esquina da casa onde me ensinou a pregar para fazermos telas de madeira para as minhas pinturas de adolescente. Foi-se entre as minhas viagens a atravessar o oceano. E desapareceram outros. Quase todas as personagens da minha infância a correr ruas, de bola, skate ou pedais nos pés são agora memória e a rua está mais tranquila não fosse o café onde homens discutem futebol e bebem, alguns até que os lembrem de parar, e mulheres tricotam histórias com palavras.
Volto à minha rua para a vida ver passar. Vão-se os dias entre o tilintar de chávenas, uma nova história que no final já não é o que era, hortas e caminhadas por entre o verde. O relógio corre lento e a liberdade de tempo faz inveja à cidade corrida. Aqui, onde se foge do cimento no autocarro demorado que abre portas para o campo. Da minha rua vejo o mundo, mas o mundo não me vê passar. Não nos vê passar.