Escrevo estas palavras no décimo segundo estado mais perigoso dos Estados Unidos, West Virginia, com os olhos postos em filas de armamento. Aqui, no país com maior número de armas de fogo no mundo.
A terra é extensa. Tão extensa que lhe perdemos o horizonte entre o ondular das montanhas e as árvores que se começam a despir. De quando a quando surge uma pequena vila, a bandeira americana em todos os alpendres, muito frequentemente acompanhada pela bandeira dos Estados Confederados, hoje símbolo de ódio racial. Paramos para abastecer. Há um silêncio gigante que se mantém à medida que entro no casebre de madeira. Cheira a mofo, há pouca luz e existem algumas mesas logo à entrada. Na porta, num enorme cartaz lê-se: damos as boas-vindas aos caçadores. Entende-se porquê no interior. Na segunda divisão do casebre encontram-se filas e filas de armas: espingardas, revólveres, o que se desejar. Basta apresentar o cartão de identificação e assinar um papel para se ter em posse uma ou quantas armas se deseje.
Em West Virginia não é requerida licença de uso e porte de arma. Mas, West Virginia não é um estado excepção nos Estados Unidos. A Segunda Emenda da Constituição do país diz que “sendo necessária à segurança de um Estado livre a existência de uma milícia bem organizada, o direito das pessoas a manter e portar armas não deve ser violado”. E foi, porventura, devido a essa facilidade legal que se abriu caminho para que a América ocupasse o primeiro lugar mundial no ranking de países com maior número de armas de fogo em mãos de civis. 400 milhões de armas para cerca de 325 milhões de habitantes, para ser precisa, 46% das 857 milhões de armas de fogo mundialmente existentes nas mãos de civis. O número um de um ranking ao qual nenhum país deveria desejar pertencer.
Dizem os relatórios que em 2017 se registaram 60 mil incidentes. Homicídio. Suicídio. Acidente. Mais de metade do número resultou em morte. Todos dias, em média, na gigante terra que piso morrem 96 pessoas devido a uma arma de fogo. A maioria negros. Na verdade, é dez vezes mais provável que um negro morra por homicídio do que um branco. Mas esta não é uma crónica sobre supremacia branca. É uma busca de compreensão do fenómeno violento não castrado.
Mas a racionalidade parece tolher-se quando se a tenta explicar. Disse Freud anos volvidos, nesses anos em que a morte era tão presente, que o homem é mobilizado por dois instintos ou pulsões, cujas atividades são opostas entre si: a pulsão construtiva, erótica ou Eros e a pulsão destrutiva, de morte ou Tanatos (a personificação mítica do impulso instintivo e inconsciente que busca a morte e/ou a destruição).
Estou mais próxima de concordar com o que James Baldwin escreveria não muitos anos após a morte de Freud: “A criação mais perigosa de qualquer sociedade é o homem que não tem nada a perder”. A morte anda de mãos dadas com a pobreza. De entre os dez estados americanos com maior número de incidentes, seis fazem parte dos dez estados mais pobres nos Estados Unidos. Qual é a surpresa? Nenhuma, pois! Que perde afinal um pobre quando prime o gatilho? A verdade é que, essa América com que Baldwin sonhou é ainda isso mesmo, um sonho.
Todas as mortes têm um rosto. Todas as mortes têm um nome. Todas as mortes começam com a mesma circunstância: uma arma carregada e “um bom rapaz” em metamorfose. Mas esta não é uma crónica sobre o portador da arma, mas sim sobre a permissibilidade de a portar. Não deveriam ser necessárias estatísticas para reconhecermos que uma arma é mais capaz de nos magoar do que de nos proteger. E, no entanto, a discussão escapa-se entre artimanhas políticas e lobbies pelos corredores do Congresso de ouvidos surdos às vozes que querem calar as balas.
“De erro em erro vai-se descobrindo toda a verdade.” E aqui já poderei concordar com Freud. Como dizer não a uma indústria bilionária? Como dizer não aos mais de 50 milhões de dólares em doações políticas, cerca de 30 milhões para a campanha de Donald Trump, doados só em 2016 pela NRA, Associação Nacional do Rifle, um dos grupos de lobby mais poderosos do país e uma forte opositora à regulamentação de armas de fogo? Até quando os dólares valerão mais do que a vida? Sejamos realistas, DaShanne Stokes estava certo: “Pensamentos e orações não pararão uma bala”. Este ano já morreram mais de 30 mil pessoas. E o contador não pára.
VISTO DE FORA
Sabia que St. Louis, no estado de Missouri, é a cidade dos Estados Unidos com o maior rácio de mortes por habitante?
O Alaska ocupa o primeiro lugar entre os 50 estados com o maior número de violência com armas e Massachusetts é considerado o estado mais seguro
Os 10 incidentes mais mortíferos ocorreram no Texas, California, Florida, Virginia, Connecticut, Oklahoma e Nevada.
Os dados indicados são do Centers for Disease Control and Prevention, do Gun Violence Archive, do Every Town Research do Small Arms Survey.