À terceira, foi de vez. Em mais uma missão- a terceira- de combate à cólera no Uíge, no Norte de Angola, eu e um (bom) colega fomos consumidos por uma diarreia, como acontece com milhares de pessoas na província, sobretudo desde Dezembro do ano passado, quando foi declarado o surto de cólera. Desde então houve a confirmação de quase 700 casos da doença e 12 mortos.
O meu primeiro “date” com a cólera foi em 2010 no Haiti, uns dez meses depois do terramoto que provocou 300 mil mortes no país. Ossos do ofício levaram-me à base militar nepalesa de onde, umas duas semanas antes, tinha saído um camião com dejectos das casas de banho que foi descarregado directamente para o rio daquela zona. Nessa descarga estavam fezes contaminadas com o vibrio cholera, a bactéria que causa a cólera. Dias depois de declarada a epidemia, lá estava eu, por coincidência, em frente a um batalhão de nepaleses, a falar sobre a tolerância zero quanto ao recurso à prostituição e outras formas de exploração (enquanto nessa mesma altura, em Porto Príncipe centenas de humanitários dançavam até de madrugada, exploravam e abusavam de mulheres e crianças vulneráveis. Soa familiar com o recente escândalo da Oxfam? Não é coincidência).
Na tal base militar nepalesa, estranhei não haver água nem sabão para lavar as mãos no WC, precisamente no local onde teria sido lançada a bactéria que a partir daquele ano de 2010 e até hoje matou mais de 10,000 pessoas.
E foi assim que, sem querer, tornei-me íntima com a doença e perdi a pouca vergonha que ainda tinha de falar em público de cocó (eu, que sempre tive queda para conversas de casa de banho). Num misto de crioulo e de francês, foi canja adaptar-me à linguagem ‘técnica’: “faire caca” para cima e para baixo, acompanhado com uns agachamentos para reforçar a mensagem, “latrine, traitement de l’eau, lavage des mains”, e por aí fora.
Ao terceiro dia de 2018, em Angola, regressei à intimidade da cólera. As fontes de contaminação, os hábitos de higiene, as condições de água potável e saneamento básico da província do Uíge não diferem muito do Haiti. Depois foi uma questão de adaptar a linguagem. Cacimba (poço que absorve as águas pluviais e principal foco de contágio). Lançar (vomitar). Twuvy (cocó em Quicongo). WêCê (obrar, numa tradução directa dos bairros periurbanos do Uíge).
Vómitos e diarreia aquosa com aspecto de água de arroz. Já repeti os sintomas mais de mil vezes. Também tem um cheiro muito característico, mas esse detalhe fica para uma outra altura.
E já que estamos neste tema, um pouco de cultura geral (de fonte duvidosa): em média, cada pessoa come 3,5 kgs de cocó por ano. Sim, comemos e temos todos muita(s) merda(s).
Infelizmente, a maioria das vítimas da cólera é do sexo feminino. Buscar água (contaminada), dar banho às crianças, lavar roupa e louça, cozinhar e dar de comer alimentos (contaminados). As mulheres fazem tudo isto (e muito mais) estando, por isso, mais expostas à doença.
Falando Nelas. Na mesma semana da nossa diarreia, testemunhei várias cenas de violência. Elas foram as vítimas deles. Anália, chamemos-lhe assim, estava já a tropeçar no álcool quando se aproximou com a filha nos braços a pedir esmola. Nem teve tempo de terminar a frase, já que Edson, o marido, agarrou-a com força pelo braço e ameaçou-a de pancada mal chegassem a casa. A cena deu-me a volta às tripas e puxei o Edson para uma conversa. O meu discurso sobre ciclos de violência, respeito pela mulher e filha, blablá, direitos e deveres, blablá, injustiça, blablá, devem ter esbarrado naquele bafo de maruvo e nos muros desalinhados daquele bairro de pobre de Luanda.
No mesmo dia, Ilídio, o moço que trabalha num prédio do meu quarteirão, apontou-me para uma figura feminina que limpava o átrio da entrada. “É a minha mulher”, disse com voz embebecida. Ainda eu estava com um sorriso romântico na cara, quando ele chuta: “Ela às vezes tira-me do sério. Agora já não posso sair e beber umas Cucas?! Sempre que se põe com cenas porque eu dormi fora de casa, passo-me!”. Deixe-me ver se eu percebi, “bate-lhe porque ela não gosta que saia, se embebede e durma em casa de outra mulher todas as sextas-feiras?” Resposta afirmativa.
Já tinha ouvido uns zunzuns, mas a única coisa que eu via era o dito vizinho a dar-lhe no uísque. Dos outros rumores, nem sinal. Até que numa destas noites, pareceu-me ouvir gritos alterados na voz de um monstro, móveis e coisas a bater, e quase que juro ter ouvido um choro miudinho e abafado. Em Angola, violência doméstica é um crime público. E eu calei. E agora, que colo os ouvidos às paredes, que demoro ao caminhar nos corredores do prédio, para escutar e denunciar, não consigo ouvi-los mais.
Em Angola, como em demasiados lugares do mundo, violência doméstica afecta, maltrata e mata mais do que as cóleras desta vida. É um dos maiores cocós da sociedade. Os mais recentes números revelam que em Angola 32% das mulheres foram vítimas de violência física desde os 15 anos; 34% dos 15 aos 49 anos em algum momento sofreram violência conjugal, física ou sexual. Mais alarmante, 25% das mulheres entre os 15 e 49 anos confere alguma legitimidade à violência marital do homem contra a mulher, enquanto 20% dos homens corroboram a mesma posição (IIMS 2015-2016). Números que provavelmente ainda pecam por defeito.
Vómitos e diarreia aquosa com aparência de água de arroz.
Em dois meses, fui quatro vezes ao Uíge. Os números da cólera na província estão finalmente a baixar, mas esta semana o canal 1 da TPA (Televisão Pública de Angola) anunciou agora casos da doença em Cabinda. Provavelmente o meu próximo destino.
Quanto à (nossa) diarreia? Pastosa! No dia a seguir, eu e o (bom) colega voltámos ao mesmo local do “crime”, onde a sopa de feijão terá causado a revolta nos respectivos intestinos, mas desta vez pedimos um frango de churrasco com batata frita e arroz. Comemos e calámos sem queixar. Como todos. Até à próxima ‘diarreia’.