Das actividades humanas – daquelas de que se pode escrever aqui – o sorriso é a mais universal e universalmente compensadora. Vejo pouca televisão, mas recentemente – por um desvio qualquer de que me entretanto esqueci – liguei um dos canais da TV portuguesa com streaming na net e procedi ao vetusto e esquecido exercício de “ver o telejornal”. Estava a dar a campanha eleitoral e todos os candidatos que apareceram entrevistados estavam rodeados de senhores e senhoras de uma macambuzidade inenarrável. Imagino que tinham instruções de parecer sérios e concentrados naquilo que os seus grandes-líderes diziam, sem se aperceberem de que estavam era com ar de quem se lhes tinha morrido o passarinho. O ar sério fica sempre mal às pessoas; em contrapartida, o sorriso transmuta e eleva o ser humano a um estatuto quase divino, que ilumina o tortuoso caminho das vidas de outrém.
Na Noruega sorri-se muito pouco socialmente. Os cumprimentos de rua são acenos e movimentos diminutos de cabeça, feitos com cara-de-pau. Os sorrisos guardam-se para casa, para os momentos íntimos, para aqueles de quem se gosta realmente. É um bocadinho como se cada norueguês nascesse com a capacidade de fazer – sei lá – uns cento e cinquenta sorrisos ao longo da vida, gastasse os primeiros 100 até aos 3 anos de idade (as crianças noruegueses sorriem com abandono), e vivesse o resto do seu tempo a contabilizar os que lhes sobram. É claro que há excepções – estou casado com uma e gerei outra duas – mas na generalidade a vida social norueguesa é passada a fazer luto de passarinhos. Não há como viver na Noruega para perceber até que ponto o sorriso dos outros amansa os monstros que escurecem os nossos dias.
No início deste ano apercebi-me que o frio do Inverno norueguês – que só de pensar nele sorrio, porque cobre as coisas de branco e me permite fazer ski – era tropical comparado com o gélido frio social que eu sentia por passar dias a fio sem ver na rua um sorriso; tipicamente, resolvi fazer algo para mudar o estado de coisas. Apercebi-me de que a reticência em mostrar os dentes era exclusiva das gerações mais recentes – tal como as criancinhas, as velhinhas e os velhinhos também sorriem sem inibição, mas infelizmente no Inverno hibernam – e não decorrente de uma qualquer mutação genética provocada por exposição às auroras boreais. Fui ter com a dona de um dos cafés mais divertidos e populares do centro da cidade (a Anette, outra norueguesa sorridente) e disse-lhe “Anette, sabes, estou farto de passar dias sem ver um sorriso, e se fizéssemos alguma coisa para mudar isto? É que de todas as coisas que se podem fazer para melhorar a qualidade-de-vida, o sorriso é a melhor e mais barata!” (os noruegueses são super sensíveis ao argumento “mais barata”). “Vamos fazer assim: eu de vez em quando venho aqui comer e tomar café e trago uma das máquinas fotográficas, falamos com as pessoas e explicamos que Aalesund tem défice de sorrisos e que queremos que se apercebam disso e passem a sorrir mais, com mais facilidade e assiduidade. Ou seja, pomos as pessoas a sorrir, eu tiro uma foto, e juntamos depois os sorrisos todos numa fotografia de 3 metros e pomos aqui na parede do café…”
Ela sorriu e disse “Embora aí!”, e assim começou o nosso mini-projecto. Eu sou um descarado e ela um encanto, o que fez de nós uma equipa irresistível – durante meses coleccionámos conversas curtas e dezenas, talvez centenas, de sorrisos – e a partir de dada altura comecei a ver que as pessoas que se cruzavam comigo na rua… sorriam. Os meus dias aqueceram exponencialmente, passei a andar de calções e t-shirt na neve. Entretanto fui algumas vezes a Portugal e confirmei aquilo que eu já sabia mas que a maioria de nós já nem nota – que os portugueses sorriem à mínima provocação. Por isso agora ver nos telejornais os candidatos políticos rodeados de gente tão artificialmente séria fez-me espécie.
O nosso poster com 3 metros de sorrisos subiu à parede do café, mas ficou pouco tempo, porque um dos clientes que é um urubu reparou que aquilo parecia um anúncio para dentistas. Mas as pessoas sorriem mais, por isso valeu.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal – horas, estou a escrever isto no avião, a voltar de Portugal.
Nas notícias por aqui – uma menina roubou pipocas ao Príncipe Harry (ou, “na Noruega não sabemos bem o que é stress”). FONTE
Um dado a reter – Na Noruega, o dentista é universalmente obrigatório e grátis dos 0 até aos 18 anos de idade, pago a 25% aos 19 e 20 anos de idade e todos as pessoas com deficiência têm dentista grátis vitalício. Por isso – quando os há – os sorrisos são lindos.