Hoje, depois de deixar a minha filha na escola e debaixo de uma chuva de fim de verão, conduzia de regresso a casa e pensava na vida. Se há palavra que não cabe numa folha é a Saudade. Carregada de nostalgia, é insaciável e crava-se no coração de quem parte e no de quem fica. “A mala de viagem, assim como o avião, têm a grande vantagem de não terem coração”, diz-me tanta vez a minha querida mãe.
Nós cá fora habituamo-nos a viver sem OS NOSSOS. Criamos uma nova casa por cima dos nossos alicerces e alimentamos a nossa força, coragem, criatividade e otimismo. Aprendemos a bastar-nos. Passamos meses a fio sem ir à terra, habituamo-nos a falar por entre écrans e desdobramo-nos para que a nossa presença seja lá sentida.
Vemos a família a crescer com a ajuda das apps, as amigas a serem mães, faltamos aos jogos do sobrinho mais velho, às festas da escola do mais novo, aos aniversários, aos jantares e aos abraços de consolo quando mais precisam de nós. O nosso máximo sabe sempre a pouco.
Numa estrada paralela à da Saudade, procuro ter a consciência diária de que não vivo uma realidade virtual e de que sou mesmo residente no Japão, caramba!
Aqui, quase tudo o que é diferente se tornou natural. Há muito que deixei de ser turista e apenas quando paro para pensar no que está à minha volta é que gostaria que os meus olhos pudessem fotografar ou filmar para que nada escapasse à minha partilha.
Os japoneses vivem com o sentido na sociedade e pensam sempre nos outros. Apertam-se nos transportes públicos e nos elevadores, sem um “ai”, para que possamos entrar e ainda nos aguentam a porta; no trânsito cedem-nos passagem sem que alguém se irrite ou buzine; têm sempre um gesto atencioso, um sorriso fácil e os agradecimentos em vénias nunca são demais (assim como a minha admiração por eles).
Bem perto de casa há um stand de automóveis que fica na estrada principal, por onde passo muitas vezes. Já cedi passagem a pessoas que saem de lá e de todas as vezes fico a olhar para o empregado que vem até à beira da estrada despedir-se e fazer uma vénia de 90º até perder o cliente de vista.
As pessoas que estão no atendimento ao público fazem-me lembrar aquele personagem do Camacho Costa nos Malucos do Riso ‹‹Vossa excelência acabou de entrar no local certo, na hora exacta, no momento oportuno. O lema desta casa é “servir bem e bem servir dá saúde e faz sorrir”.›› E não é que me fazem mesmo rir?!
Despertar a rir também não é tarefa difícil por cá, mesmo acordando de mau humor.
Ligo a televisão e salta do écran um homem vestido de vaca cor-de-rosa e bochechas coradas que adora tomar banho numa banheira sem água, seguido de umas miúdas vestidas de bonecas de trapos num cenário de glamping japonês. Vem depois a marcha dos algoritmos, onde dois homens se infiltram em diversas profissões e fazem movimentos em cadeia e o PythagoraSwitch que todos os dias mostra objectos do quotidiano em sequências diferentes, incentivando as crianças a despertarem o modo de pensar sobre as coisas.
Nos programas infantis temos ainda os Caricas cá do sítio, as aulas de inglês, desenhos animados variados, vídeos amadores de meninas e meninos de 3 anos a comerem, a lavarem os dentes e a vestirem-se sozinhos, animais de estimação e muita, muita música. No início estranhamos esta esquizofrenia mas passado uns tempos apercebemo-nos de que, além de diferentes, são extremamente educativos.
Ao longo do dia a dificuldade em assistir ao que quer que seja nos canais nacionais aumenta e acabamos por desligar a TV. Acompanhamos online as notícias do mundo e acontece-nos muitas vezes sabermos mais depressa pelos media portugueses que houve um sismo ou um tufão no Japão do que pelos de cá.
Recentemente, um bocadinho alienados do mundo, chegou-nos de Portugal que a Coreia do Norte tinha lançado um míssil balístico que sobrevoou o Japão antes de cair no oceano Pacífico.
Demos conta de que tínhamos muitos corações a pulsar desse lado e que deste estávamos mais tranquilos do que uma preguiça na árvore.
Mãe – Palavra de honra, se alguém me dissesse que a minha filha está no Japão e não dá conta dos mísseis eu não acreditava!
Sobrinho – O que é “paladonra”, avó?
VISTO DE FORA
• Dias sem ir a Portugal… 122
• Nas notícias por aqui… não se fala noutra coisa: Madonna comprou casa em Portugal! As imobiliárias japonesas distribuem flyers aliciando estrelas internacionais a comprar casa no país do sol nascente. Argumentam que a Alfândega cá é tranquila e que podem enviar por correio quantas caixas quiserem, que os cabeleireiros a disfarçar as raízes são top e que também podem passear a cavalo no Japão.
Não parece mas agora, sim, as notícias reais:
O Japão continua empenhado na preparação dos Jogos Olímpicos de 2020 e já foram feitas uma série de mudanças nas infografias e nas restrições aos banhistas. Outra das preocupações é a segurança rodoviária. Para prevenir acidentes que envolvam estrangeiros e após um estudo aprofundado das zonas de maior perigo na estrada, encontraram uma solução: autocolantes!
Foi criado um autocolante que diz “A Foreigner is Driving”. Este autocolante já se encontra a circular em Okinawa e Hokkaido.
• Sabia que por cá… quando estão parados nos semáforos das passadeiras ou à espera de autocarro, muitos japoneses (maioritariamente idosos) fazem alongamentos e exercícios que simulam tacadas de baseball ou golf. Nós, que os observamos, ficamos a imaginar a precisão das bolas e onde é que irão parar.
• Um número surpreendente: 60 000 cidadãos japoneses estão nesta altura a viver ou a visitar a Coreia do Sul. O Governo Japonês está a elaborar um plano de emergência, com base nas ameaças da Coreia do Norte, para evacuar todos os cidadãos japoneses da Península Coreana caso haja encerramento de aeroportos.