Em maio, na semana em que se celebraram os 375 anos da cidade de Montreal assisti a uma conferência de estudos feministas e de género onde, ao lado de académicos de várias disciplinas, participaram artistas e ativistas de várias áreas de estudo. Nessa semana, enquanto o resto da cidade festejou mais um aniversário e os jornais se encheram de fotografias do espetáculo de luzes na Ponte Jacques Cartier e de descrições e convites para as muitas atividades previstas para assinalar este aniversário, no auditório da Universidade Concordia a maior parte dos oradores começou a sua apresentação a relembrar que estávamos sediados em território tradicional do povo Kanien’kehá: ka e que a ilha chamada “Montreal” é também conhecida como Tiotia:ke na língua do Kanien’kehá: ka. Esta mensagem faz parte de um protocolo cultural de várias universidades para reconhecerem a ligação à terra e prestar homenagem às populações indígenas.
Historicamente, Montreal ou Tiotia:ke foi um local de encontro para outras nações indígenas, incluindo o povo Algonquin. Este ano celebram-se os 375 anos da cidade de Montreal, ou melhor, 375 anos desde o 17 de maio de 1642, dia em que um grupo de franceses liderado por Paul de Chomedey de Maisonneuve e Jeanne Mance chegaram a Montreal e estabeleceram um centro missionário em Ville-Marie. Mas nem todos acham que há razões para celebrar. Para os ativistas indígenas, falar dos 375 anos da cidade é negar a existência dos povos que já cá estavam– entre 10.000 a 20.000 anos antes da cidade ser colonizada pelos franceses.
Também este mês se celebram os 150 anos da Confederação do Canadá. A 1 de julho de 1867, depois de um longo processo de negociações (mas sem guerra, contrariamente ao que aconteceu nos Estados Unidos) o Canadá tornou-se independente do Reino Unido. Para assinalar a data, há por todo o país festivais, instalações de arte públicas, concertos, paradas canadianas e até a emblemática folha de bordo de onze pontas foi recriada por centenas de pessoas com t-shirts vermelhas em Winnipeg. Também muitas marcas nacionais fizeram edições especiais de t-shirts “Canada 150”, biscoitos em forma da folha do Canadá, entre toda uma coleção de porta-chaves, canetas, canecas “150” que se juntaram há já enorme variedade de ursos de peluche vestidos com a farda da “Royal Canadian Mounted Police” e outros souvenirs canadianos. Este ano, os parques federais são gratuitos para quem vive no Canadá e, para quem gosta de viajar, 2017 é o ano certo para vir conhecer o país dos grandes lagos. Se o dia 1 de julho ou as celebrações que estão previstas até ao final de 2017 são um pretexto para enaltecer as características do povo canadiano como inclusivo, tolerante e do país como um dos mais multiculturais do mundo, também representam uma oportunidade para pensar no impacto do passado no presente e no futuro, sobretudo no que diz respeito às práticas coloniais e no papel e história dos indígenas no país. Um número controverso, os 150 anos puseram o país a discutir sobre o colonialismo, a descriminação, o reconhecimento dos povos indígenas e novas formas de coexistência das várias comunidades e culturas. De todas as perguntas que estão a ser feitas com estas celebrações, uma das mais importantes é a de saber se é possível celebrar os 150 anos de Canadá e respeitar ao mesmo tempo os direitos dos povos que já cá estavam antes. Em reação a estas celebrações foi criado o hastag #Resistance150 e criou-se o logo “Colonialism 150” em resposta ao “Canada 150”.
Uma das ações por parte do poder político decorrentes desta vontade de conciliação e reparação com as comunidades autóctones e que teve mais impacto internacionalmente aconteceu no final de maio quando o primeiro-ministro Justin Trudeau foi ao Vaticano e pediu ao Papa Francisco que a Igreja Católica fizesse um pedido de desculpa pelo papel que desempenhou nas “escolas residenciais” (Residential schools), que foram administradas pela Igreja. Foi para estas escolas onde se enviaram cerca de 150 mil crianças indígenas retiradas das suas famílias e da sua cultura, proibidas de falar as suas línguas maternas e afastadas das suas práticas ancestrais, para que fossem educadas na fé cristã e civilizadas de acordo com os preceitos ocidentais dos colonos brancos europeus.
As discussões em torno dos direitos dos autóctones têm crescido nos últimos anos. Em 2015, a Comissão de Verdade e Reconciliação do Canadá (Truth and Reconciliation Commission of Canada), tornou público os testemunhos de alguns sobreviventes das “escolas residenciais”, uma prática que foi considerada um “genocídio cultural”. Quase semana sim semana não ouvimos o triste destino de mais uma mulher desaparecida ou assassinada numa das comunidades do grande norte ou lemos nas notícias que mais adolescentes dessas comunidades se suicidaram. As comunidades indígenas continuam a ter os números mais altos em termos de descriminação, pobreza, alcoolismo, consumo de droga, etc..
Mas não é só para as comunidades indígenas que esta celebração tem um sabor amargo. A coexistência entre anglófonos e francófonos não é, contrariamente ao que se possa pensar, completamente pacífica. Nos anos 70 o movimento separatista teve o seu momentum, sendo que nos últimos anos tem perdido força. A ideia das “two solitudes” ou “deux solitudes”, uma expressão utilizada pelo escritor Hugh MacLennan para ilustrar a falta de comunicação entre as populações dos dois grupos linguísticos não desapareceu por completo. Tanto o meu marido como eu temos a sorte de frequentar os meios académicos, profissionais e sociais tanto em inglês como em francês mas continuamos a ficar surpreendidos com o desconhecimento que a maior parte das pessoas de uma comunidade tem do estilo de vida, da literatura, das práticas culturais da outra. Até parece mentira, mas mesmo pessoas da nossa geração nascidas e educadas em Montreal, uma cidade bilingue, fala muito mal inglês ou francês e não fazem ideia do que se passa no lado de lá da cidade, ou, sem ir tão longe, do que se vê, lê e ouve na família da porta ao lado. Não se falar uma das línguas numa cidade bilingue, significa uma enorme perda em termos de acesso a informação e a possibilidade de interagir com as diferentes comunidades assim como de consumir os produtos culturais e artísticos de cada uma delas. Por outro lado, para quem tem interesse em conhecer as diferentes possibilidades que a cidade oferece, não sei se haverá cidade ou país mais rico do que Montreal e o Canadá.
Além das versões canadianas das duas culturas dos países colonizadores e da presença discreta mas crescente das culturas das comunidades indígenas, o Canadá continua a receber imigrantes de todos os países do mundo, muitos deles refugiados. Os desafios que o fluxo de novos habitantes coloca em termos de integração, secularismo, respeito, diversidade são muitos e conhecidos. Mas é importante também ver o lado bom de um país multicultural e de pensar esses desafios como oportunidades para pensar a coexistência de culturas em perspectivas mais variadas e abertas do que um país menos multicultural permite. A mobilização das pessoas e do conhecimento obrigam as sociedades a pensar em novas formas de se organizarem e conviverem pacificamente. Uma das coisas que mais me fascina nesta cidade e neste país, é fazer parte de um movimento de constante renovação; de viver em tempo real a não fixidez de formas de pensar ou agir; de questionar em permanência o que se foi, o que se é e o que se pode ser.
Curiosamente, embora estas celebrações sejam vividas de forma ambígua por várias comunidades, há, apesar de tudo, um sentimento de pertença muito forte à terra e às (multi)culturas canadianas.
Estas celebrações têm sido fundamentais para relembrar a necessidade de cultivar um olhar crítico e construtivo em relação ao passado, a importância de se reconhecer os erros, a urgência em pensar em alternativas de conciliação, a relevância em colocar questões e agir de forma informada e crítica no presente para o futuro. Como imigrante também tenho tentado perceber onde é que me posiciono nestas celebrações e questões. Fruto do clima das celebrações, das muitas perguntas dos meus filhos em relação às origens deles e às nossas mas também porque depois de oito anos e depois de dez anos de casados nos decidimos (ainda que ambiguamente) a comprar casa aqui, estou a viver uma espécie de crise de identidade enquanto cidadã. Se por um lado me sinto muito europeia, muito portuguesa e se falo em português com a minha família, regresso a casa sempre que leio Sophia aos meus filhos, continuo a ouvir as notícias de Portugal e a par do que se passa na cena artística e literária e se pudesse comia sardinhas frescas e polvo grelhado todas as semanas, também me sinto já muito canadiana, muito quebequense, muito montrealense. Gosto muito do nosso estilo de vida e da família que cresce aqui e que seria certamente diferente da família que teria noutro lugar do mundo. Gosto cada vez mais da bairro onde vivo e da cidade de Tiotia:ke que tem tantas histórias ainda por conhecer. Gosto muito deste país sobre o qual sabia muito pouco quando cá chegamos e que me surpreende todos os dias com a sua diversidade cultural, a magnífica riqueza natural e enorme capacidade de se desafiar e renovar. Por isso, ainda que atenta e crítica a tudo o que se esconde por trás destas celebrações que às vezes parecem ser só feitas de boas intenções, também este ano celebro a escolha de pertencer há já nove anos a esta cidade, a este país, a esta terra tão fértil de solo, de história, de culturas e de ideias.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: muitos, desde agosto do ano passado.
Nas notícias por aqui: os 150 anos do Canadá comemorados a 1 de julho.
Sabia que por cá: mais de 1.4 milhões de pessoas se identifica como indígena?
Um número surpreendente: 46% dos membros das comunidades indígenas tem menos de 25 anos sendo por isso a faixa da população mais jovem do país.