Menti. Fingi estar ainda em Myanmar, a viajar pelos vários estados do país, quando, na verdade, nos últimos dois meses já mudei de continente, de hemisfério, mas sem nunca mudar de vida (nem de parágrafo de apresentação desta rubrica do Nós lá Fora). E no próximo mês mentirei outra vez, quando voltar a escrever sobre Myanmar e sobre um paraíso perdido no sul do país. Lá voltaremos em Agosto.
Hoje, estou no Dundo, na província angolana de Lunda Norte, cidade colada à fronteira com a República Democrática do Congo. E não queria estar em mais lado nenhum. Desde Abril que já terão chegado aqui mais de 30 mil refugiados congoleses, a fugir do conflito do outro lado da fronteira.
A esmagadora maioria dos números desta crise de refugiados esconde vidas de crianças e mulheres, mas os meus últimos dias têm sido feitos de encontros e de apelos desesperados no masculino. O jovem a quem roubaram o único saco que lhe restava de 20 anos de vida e que pede desesperadamente ajuda para interceder junto da polícia; o líder de um dos campos que telefona às 6 da manhã a informar da morte de uma criança; um rapaz que foi atacado por um rival que lhe tirou o saco de fuba que recebeu na distribuição de comida; o elemento da equipa de desminagem que precisa água para ajudar a manter os trabalhos de (e o seu próprio) pé; um refugiado que perdeu a vida no hospital e cujo corpo foi levado de volta ao campo e deixado no meio do chão; o voluntário congolês que já se queixa da hérnia há três dias e que mal se aguenta em pé; etc., etc. E depois, lá pelo meio, há o meu trabalho. A razão pela qual vim para aqui. Ou talvez não.
Num desses encontros de campo, um homem alto e bem-posto aproxima-se num francês composto e, sem rodeios, atira: a minha filha foi violada e precisa de fazer os necessários exames médicos. Ao lado, uma menina adolescente, com os olhos pregados ao chão. Já depois de encaminhados aos serviços médicos do campo, o pai volta. Quer desabafar e contar o que aconteceu. A menina fica a brincar com outras crianças ali ao lado, longe da conversa, mas sempre perto da vista. O pai viu tudo, ouviu tudo. “Sabe o que é para um pai ver a filha a ser violada e não poder fazer nada?!”- lançou sem pré-aviso. E falou de honra a gladiar-se com a morte, falou de vida e do dever de protecção, falou do orgulho de pai de oito, do amor à mãe dos seus filhos, falou da dívida que tem com a vida desta menina, de começar do zero, de fazê-la sorrir outra vez em Angola. E ela, tímida, tenta brincar ali ao lado com outras crianças. Tenta voltar a ser criança, mas não sorri.
Numa destas manhãs no campo, a notícia de que a malária levou mais um bebé. Uma menina de sete meses. Todos os contactos e procedimentos foram seguidos, a família aguardava a chegada das autoridades que iriam retirar o corpo e proceder à cerimónia fúnebre. Relatório feito, caso fechado, pensei. Mas o pai vem pedir ajuda. O bebé está há algumas horas dentro da tenda, o calor ameaça o estado do corpo. O pai só pede uma pequena estrutura coberta fora da tenda, onde possa ser colocado condignamente o corpo e onde os familiares possam reunir-se para confortar uma mãe destroçada enquanto não lhe tiram de vez a filha dos braços. A minha primeira reacção foi dizer a verdade: não temos tendas, não podemos fazer nada. Dito (e escrito) assim, soa quase tão cruel como a morte de uma criança. Claro que podia e recuei a tempo. Com o nosso grupo de refugiados voluntários, recolhemos canas de bambu e lonas de plástico e fomos juntos montar uma mini tenda junto à família enlutada.
A determinação do acto embateu de caras com a chegada à tenda e com o olhar perdido da jovem mãe. Com um nó na garganta, verguei-me ligeiramente e dei os sentimentos a uma mulher, mãe, contorcida pela dor que estava num choro mudo, já sem forças para mais. Olhei para a bebé. A boneca mais linda que alguma vez vi. Não perguntei o nome. De propósito, com esperança (vã) que não sentisse tanto. Perdoem-me. Descansa em paz meu anjo.
Visto de Fora
Dias sem ir a Portugal: 60
Nas notícias por aqui: O governo de Angola anunciou que já gastou 1,6 mil milhões de kwanzas (8,5 milhões de euros) na ajuda aos refugiados congoleses que chegaram à província de Lunda Norte.
Um número surpreendente: Para além dos 30 mil refugiados que fugiram para Angola, o conflito entre milícias e forças governamentais congolesas na região do Kasai já provocou um milhão de deslocados no interior da República Democrática do Congo (RDC).
Sabia que por cá: Já não é a primeira vez que os vizinhos da RDC procuram refúgio em Angola. As primeiras grandes vagas de refugiados chegaram logo nos anos 60, após a independência do país colonizado pela Bélgica. Também no Congo, ainda vivem dezenas de milhares de angolanos que fugiram durante a guerra civil de Angola.