Se levássemos à letra muitos dos relatos de turistas publicados na internet, a viagem de comboio entre Mandalay e Hsipaw dificilmente se safaria de um chumbo. Onze horas de percurso que nalguns dos casos relatados foram acompanhadas de bichinhos quase invisíveis a viver nos assentos que picavam nos cotovelos (já vi piores zonas de ataque); enjoos provocados pelo balanço descontrolado das carruagens; bancos de pau na classe mais económica e assentos revestidos a alcatifa gasta e pisada na “primeira classe”. Tanta história para um percurso de pouco mais de 200 kms que, em carro, se pode fazer em cinco horas. Era óbvio que na hora de decidir o meio de transporte para chegar a Hsipaw, não hesitei.
Estação de Mandalay, 4 AM. Um frio de rachar pouco habitual para esta zona de Myanmar. “Pouca terra, pouca terra, po-pou-pou-ca terr-terrra”, e os primeiros soluços surgem logo no arranque da viagem. As portas das casas de banho num abre-e-fecha em sintonia com os tropeços na linha férrea e, em menos de 500 metros percorridos, as mochilas empoleiradas nas bagageiras caem em coro para o corredor. Entre gargalhadas e caras de susto de turistas que obviamente não passaram os olhos pelos relatos da internet, aprecio a cena. Só por isto já valeu a pena, penso (enquanto vigio os cotovelos e lamento que as janelas não fechem para travar o vento frio da madrugada que já gela os pés).
Entre balanços e travagens, “piiiiiiii”, o corpo molda-se ao ritmo, perde o sono, e até ganha coragem para escrevinhar os altos (e baixos, e lados, um frenético carrocel) da viagem e até ler partes de um livro sem marear (do qual não reza a história).
Dos bichos que atacam cotovelos, ainda nem sombra. Nas primeiras quatro horas, não há sinal de comida. Um bolo de abóbora, empurrado com “queijo” tipo Vaca que Ri, comprados de véspera junto à estação, matam o bicho (não, não me refiro ao papa-cotovelos).
O raiar do sol põe a nu as paisagens agrícolas; casas de bamboo, as melhores decoradas com um mini-prato satélite que traz para casa centenas de canais de televisão e ladeadas por latrinas rudimentares; mulheres vestidas a tomar banho no rio, enquanto outras lavam a roupa na pedra ao lado; crianças a trabalhar no campo, outras mais à frente a carregar tijolos. Ao virar da esquina, noviços que já terminaram a recolha de oferendas matinais ficam a ver o comboio o passar.
Já o sol ia nas dez e meia quando as vendedoras tomaram de assalto as carruagens. À venda por meia dúzia de tostões (que é como quem diz entre 2000 e 4000 kyats), bananas, ovos de codorniz, amendoins, e todo o género de fritos típicos de pequeno-almoço, parentes próximos das farturas.
O ponto alto da viagem está precisa e literalmente relacionado com a altura. Com 689 metros, o viaduto Goteik, entre a cidade de Pyin Oo Lwin, o antigo poiso veraneio dos colonizadores britânicos, e Lashio, a principal localidade do norte do estado de Shan, é a ponte mais alta em Myanmar. Foi também a maior ponte ferroviária do mundo quando foi construída, em 1900. E andámos 100 kms e sete horas (aos trambolhões) para aqui chegar.
Alto!Juro que vi uma sombra a correr rente aos bancos junto às janelas. Quase que aposto que é um rato. Mas o dia já vai deliciosamente longo e sol já entra a fundo pelas janelas que não devem fechar há décadas. Mais rato, menos rato, nada arrefece este momento.
Estação de Hsipaw, 11 Horas depois. Onze horas depois, os pés ainda estão gelados mas a alma está cheia. Mas ainda dá para acotovelar muito espaço para receber o que aí vem nos próximos dias de caminhada de mochila às costas pelos montes e aldeias à volta de Hsipaw (e o bicho, cadê?).
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 30
Nas notícias por aqui: Foi divulgado um vídeo no qual homens com uniforme militar estão a espancar vários detidos algemados, suspeitos de pertencerem a grupos étnicos armados. Na mesma semana, foram encontrados os corpos de três civis de uma zona étnica em conflito que tinham desaparecido depois de serem detidos pela polícia.
Um número surpreendente: Mais de 21% das crianças entre os 10 e os 17 anos trabalham, ou seja, qualquer coisa como 1,65 milhões de crianças.
Sabia que por cá: Uma sanita é coisa rara nas zonas rurais de Myanmar e mesmo ter simples latrinas não é para todos. Há pelo menos 20% da população que nem isso tem.