Descemos para almoçar e sentámo-nos à mesa. Sem que o houvesse planeado acabei sentado à frente de Alexandre, o que foi bom, dado ser a pessoa com mais autoridade na equipa e queria conhece-lo melhor.
Veio a comida. Enquanto eu olhava para o meu prato ia olhando discretamente para Alexandre para perceber o melhor momento de iniciar uma conversa de circunstância.
Foi aí que o vi de olhos fechados, a rezar. Benzeu-se e começou a comer.
A partir daí a conversa começou a fluir. Não sei se foi da benzedura, mas afinal o homem era mais simpático do que tinha parecido até então e falava inglês!
Milagres do tempo quaresmal, só pode…
A princípio esta manifestação tão aberta de religiosidade pareceu-me estranha. Poucas vezes vi nos últimos anos na Europa Ocidental alguém benzer-se antes de começar a comer.
De repente, tudo começou a fazer mais sentido.
Uma semana depois reparei ao almoçar com um amigo que ele pediu o menu de quaresma, sem carne. Vários restaurantes naquela cidade russa tinham menus de quaresma, e muitos ortodoxos practicantes se abstêm de carne e álcool durante este período.
Não é segredo que a Igreja Ortodoxa, após o longo inverno comunista, voltou à vida qual flor depois dos gelos invernais. Durante a comunismo a Igreja lá foi vivendo, colaborando melhor ou pior, com uns resistentes aqui e outros menos resistentes ali, com algumas igrejas dinamitadas, transformadas em bordéis ou piscinas, mas subsistiu.
A raiz era forte e ela ergueu-se de novo.
Todos conhecemos a liturgia oficial.
O poder que veio após a Perestroika fez um pacto (não tão diabólico quanto se julga) com a Igreja Ortodoxa; uma mão lava a outra, e neste caso, a mão esquerda sabe muito bem o que faz a direita.
Contudo, e para lá das promiscuidades entre estruturas de poder e negócios menos claros, a religiosidade dos russos ortodoxos é comparativamente superior ao que vemos na Europa. É algo profundo, ritual, pessoal.
Um sentimento que durante 70 anos se tentou por todos os meios destruir e que voltou; quiçá nunca terá desaparecido.
É facto conhecido que o governador da província de Leningrado onde se situa São Petersburgo é profundamente religioso, místico até, diriam alguns.
Pertence a uma sociedade piedosa que se desloca em peregrinação anual ao mosteiro situado no cimo do Monte Athos na Grécia.
Poderes vieram e partiram, novos rostos e novos estilos substituem os que antes governaram, e com mais ou menos escândalo, a fé mantêm-se. Talvez só mesmo a fé reste, quando a estrutura que a representa se mostra pouco digna da mesma.
Ainda agora desapareceram uns 50 milhões de Euros de um banco detido maioritariamente pela Igreja Ortodoxa Russa. Os seus responsáveis afirmam desconhecer o paradeiro da soma, outorgada em empréstimo sem contrato e baseada apenas em palavra de honra.
Lá haver fé, há, mas há milagres em que só mesmo os anjinhos acreditam.