Não é novidade que a casa de banho é um local apropriado ao humor.
Como não frequento a das senhoras, só posso avaliar a dos homens, e noto com alguma tristeza que já várias peças de publicidade reclamaram um espaço dantes reservado apenas às mais solenes funções excretoras.
Os meus leitores decerto recordam pequenas balizas nos urinóis com uma bolinha de futebol em miniatura pendurada por um fio que permite uns bons segundos de entretenimento, ou placards com imagens de senhoras sobre os urinóis que olham para baixo e riem das humildes genitálias que ali se descobrem.
São Petersburgo, a auto-intitulada capital russa da cultura, consegue uma abordagem muito mais literária a este tema.
Há um certo café com alguma tradição na cidade de ser café literário. Estantes cheias de livros para consulta e gente mal vestida, sentada à frente de portáteis Apple com rostos consumidos pelo spleen, atestam do pedigree cultural/hipster do estabelecimento.
A cereja no topo do bolo?
Na parede da casa de banho, flutuando em quieta dignidade, sobressai do ladrilho uma escultura singular – um nariz.
Esta piscadela de olho à cultura revela uma deliciosa ironia, uma homenagem ao conto “O Nariz” de Nikolai Gogol, publicado em 1836 na revista “O Contemporâneo”, propriedade do poeta Aleksander Pushkin.
Neste conto, o grande mestre do absurdo brinca com a obsessão típica da São Petersburgo imperial pelos graus hierárquicos.
Em breve, a obra descreve as desventuras de um funcionário público, o major Kovalyov, que um dia acorda sem o nariz. Depois de uma busca frenética descobre que o apêndice nasal não só ganhou vida própria e fugiu, como chegou a obter um grau no serviço do Estado superior ao seu.
Gogol, ele próprio possuidor de um nariz aquilino de grandes dimensões, facto que ele próprio ironizava, brinca com a tremenda importância que os níveis hierárquicos tinham na capital imperial desde que Pedro o Grande havia instituído a Tabela dos Graus, determinando com exactidão quase científica todos os graus possíveis de nobreza, o que deu a possibilidade a muita gente comum de adquirir títulos de nobreza pelo mérito dos seus serviços ao Estado.
Esta boa intenção deu todavia lugar à criação de um enorme aparelho burocrático e consequente ambiente claustrofóbico de inveja e comparação constante na sociedade.
Quase tudo em São Petersburgo é fruto de um édito; até as festas no Jardim de Verão dadas por Pedro, a imitar as festas galantes europeias, eram de presença obrigatória.
Com muito menos charme e virilidade do que Pedro, são hoje anónimos funcionários em alguns países europeus que determinam em que dia se pode pôr o lixo na rua, e que aos domingos não se pode fazer mudanças, ou que os chefes estão proibidos de enviar emails aos seus subordinados após o horário de expediente. Pelos vistos, não são só os russos que gostam de autoridade…
Sejam boas ou más as intenções, a história ocidental parece sempre fascinada pela ideia da ordem, qual traça atordoada a voar em elipses na órbita de uma lâmpada quente que acabará por queimá-la.
Diziam os Gregos que “Nada em excesso”.
A melhor forma de o combater será sempre a ironia, o último bastião da normalidade.
A existir, o paraíso terá um lugar de predilecção para todos aqueles que conseguiam ver o ridículo por detrás das fachadas veneráveis, sem necessariamente as querer destruir.
A lindíssima catedral de Kazan em plena avenida Nevsky é um perfeito cenário desta máxima. Foi o local onde o grande marechal Kutuzov orou ao ícone de Nossa Senhora de Kazan antes de partir para a vitoriosa campanha contra Napoleão, e também o local onde Gogol fez o major Kovalyov confrontar o seu nariz escapulido.
Saber apreciar os dois lados da obra do Homem é uma virtude, por isso conforta-me ver aquele fugidio e orgulhoso nariz aprisionado na clausura de uma retrete até ao fim dos tempos.