A vontade de explorar o mundo nasceu e cresceu comigo, na pequenina cidade da Guarda. Não tenho memória de mim que não albergue a curiosidade pelo que ainda não conheço, a necessidade de saber e de explorar, de estar presente e não só de ouvir contar. Foi desta necessidade, levada à angústia, que o meu percurso foi feito. Gosto de pensar que ainda sou nova mas, se as estatísticas me forem favoráveis, metade da minha vida já foi gasta. Vivi nos cinco continentes do mundo e por eles fui deixando amizades e páginas importantes da minha memória. Não sou um todo sem esses sítios e sem essas pessoas – seria um eu diferente sem eles e elas. Tudo na vida tem um preço e o preço da satisfação desta curiosidade em ver e viver e estar lá é que sou uma manta de retalhos por coser: nunca estou completa em nenhum lugar.
Desconfio que não sou única mas que somos muitos, neste mundo globalizado, que andamos às turras com quem somos, de onde viemos, para onde vamos, onde pertencemos. Se ficamos, temos uma identidade clara, uma pertença inquestionável. Se partimos, mas escolhemos um lugar, encontramos outra identidade e lutamos por enquadrar a primeira na segunda, ou a segunda na primeira, e ao longo dos anos vamos descobrindo onde pertencemos. Mas se partimos e partimos e partimos e as vivências se vão fazendo de culturas e espaços tão diferentes uns dos outros, a procura de uma identidade e de uma pertença – que inquestionavelmente existe no fundo da nossa natureza humana – torna-se uma questão quase dolorosa.
A resposta complica-se quando a diversidade vive no seio do núcleo familiar. Eu sou Portuguesa, o Roger é Australiano e os nosso filhos não sabemos o que serão. Já viveram em Portugal, viveram na Austrália, e se ficarmos em Kuala Lumpur pelo período de tempo que tencionamos ficar, terão vivido mais na Malásia do que em qualquer um dos países que inicialmente formou a identidade dos pais. Mas eu quero que os meus filhos se sintam Portugueses; e o Roger quer que eles se sintam Australianos – porque nenhum progenitor quer que o filho caia muito longe da árvore que o gerou. Por outro lado, nenhum dos dois anseia oferecer uma identidade míope, patologia que tantas vezes fere quem nunca viu mais do que a sua terra. Talvez para eles seja mais fácil gerir esta ambiguidade, porque já nasceram dentro dela, ao passo que tanto para mim como para o Roger houve uma identidade clara antes da dispersão.
Divididos como estamos, fomos passar o Natal à Austrália e passaremos as férias escolares em Portugal, no Verão Europeu – como se não nos bastasse o Verão eterno que aqui temos. Desde que saímos de Portugal, sei que dificilmente voltaremos a estabelecer-nos nas fronteiras do meu país. As oportunidades são menores; o nível de vida muito inferior; o que podemos oferecer aos miúdos tão mais limitado a tantos níveis… não todos – como por excepto na experiência da família alargada, que nutrimos ainda tão bem na nossa cultura e é tão importante na formação de um ser humano completo. Na Austrália, por outro lado, não me é claro ainda onde me será possível conciliar as oportunidades de futuro com um sentimento de pertença.
Antes da saída para Kuala Lumpur, achei que tinha encontrado o sítio que poderíamos chamar casa para sempre: uma pequena localidade colada à floresta de pinheiros e eucaliptos que a separa de Melbourne. Poucos habitantes, mentalidade progressista, boas escolas. Depois dos retalhos que Kuala Lumpur acrescentou, uma visita a Woodend há uma semana deixou dúvidas. O perfume dos pinheiros e a vastidão da natureza estava lá, tal como a recordávamos. Mas estava lá também uma quietude exagerada, uma falta de diversidade e cultura, um sentimento inexplicável e desconfortável de complacência com o estado do mundo – tão fácil, de resto, de encontrar na Austrália, a verdadeira sociedade de bem estar deste início de século. Mas dificilmente alguma coisa mudou em Woodend no espaço de seis meses. A única coisa que mudou foi mais uma vez o personagem que olha e a mente que processa. Ou seja, eu.
Poucos dias depois da visita a Woodend, quando explorávamos com um amigo estas questões da “casa” e da identidade, surgiu o comentário que resume todo este artigo e mais palavras não seriam precisas. Contou-me que quando viviam na Dinamarca e depois na Suíça, antes de regressar de vez à Austrália, cada vez que visitavam o país natal sentiam a falta do que tinham na morada temporária; e quando voltavam aos país de acolhimento, faltava-lhes a familiaridade e pertença que sentiam na Austrália. Durante estes anos, “casa foi onde não estávamos”. Até regressarem, assentarem, comprarem casa e criarem filhos.
Nunca deixarei de ser portuguesa, mas a palavra já não me define – e contudo, não há nenhuma outra melhor para me definir. Porque não antevejo um regreso ao meu país, esta questão nunca deixará de me atormentar. Farei de tudo para que os meus filhos se sintam em casa quando regressamos de férias em Portugal, mas sei que a sua identidade não vai ser nunca igual à que eu tive e desconheço a este ponto qual irá ser. Nas escolhas que fazemos na vida ganhamos e perdemos sempre alguma coisa. A cultura em que nascemos é um conforto único, a cama feita à espera do corpo no final de um dia extenuante. É laborioso conseguir encontrar o mesmo conforto nos braços de outra cultura. É preciso que ela não seja madrasta e tenha âncoras que saibamos reconhecer.
A minha emigração, e a daqueles que convidei a aqui marcarem presença, é privilegiada. Não nasce de guerra ou da opressão. Nasce primeiro da curiosidade e depois da busca de uma maior qualidade de vida. As fronteiras não me estão barradas em quase lado nenhum. Entro e saio airosamente em todo o lado onde a maior parte do mundo deseja entrar. A minha emigração é privilegiada e ainda assim fracciona a minha identidade. Sou feliz nos braços de uma madrasta porque ela não me maltrata particularmente. Mas não me é difícil perceber como a falta desses braços e dessa linguagem comum, dessa cama no final do dia, dessas âncoras conhecidas, deixam alguém perdido neste mundo, sem nele saber navegar nem atracar, desesperado por pertencer a alguma coisa ou algum lugar e pronto a cair nos braços de quem isso lhe proporcionar.