Atendendo à época, é quase inevitável debruçar-me sobre as tradições natalícias locais. E a mais surpreendente, para os nossos padrões, reside na disputa de protagonismo que o Pai Natal tem de travar (e que invariavelmente perde!) com um Santo turco acompanhado por um jovem de cor.
Não é que o Père Noël seja desconhecido por estas bandas. Mas seguramente não é o rei da festa. O lugar de destaque está reservado, sim, para Saint-Nicolas. Dir-me-ão que foi neste Santo que a Coca-Cola se inspirou para criar o Pai Natal. E é bem verdade. O Santo Nicolau tem longas barbas brancas e apresenta-se habitualmente com uma vestimenta encarnada. Só que, ao contrário do que acontece em quase todo o mundo, onde o personagem ficcionado suplantou o modelo inspirador, na Bélgica (e noutros países da região) é o Santo que congrega todas as atenções.
De facto, por estas bandas o Santo Nicolau é alvo de um enorme culto. E não me refiro ao culto religioso que a sua condição sagrada pressuporia. Refiro-me, sim, a um entusiástico culto infantil, visto que é o Santo Nicolau que traz e distribui doces às crianças.
Tudo isto se passa, não no dia 25, mas um pouco antes, a 6 de dezembro. É este o dia oficial do Santo, em que ele chega, normalmente de barco, vindo da sua região-natal, algures na atual Turquia (e não na Lapónia). Pelo caminho, o Santo Nicolau terá parado em Espanha, de onde trouxe um acompanhante: Pedro, o preto.
É neste ponto que a lenda se torna um pouco sinistra. O bondoso Santo, que oferece chocolates à miudagem, é ajudado por um pretinho envergando trajes folclóricos. Nos últimos anos, esta estranha parelha tem motivado bastante polémica, com acusações de que a tradição está profundamente enraizada de racismo, de tal modo que em muitas figurações o Pedro passou entretanto a surgir de tez clara (não sei o que será pior…). Seja qual for a cor da sua pele, o que é certo é que o rapaz não tem um papel simpático.
Ao contrário do velhinho de barbas, que distribui doces, ao Pedro cabe castigar os meninos que não se portaram bem. Para o efeito, dispõe de um chicote – daí que, a par das suas designações mais raciais, como Pierre le Noir ou Zwarte Piet, seja também conhecido como Père Fouettard, justamente por trazer um fouet (chicote) – e transporta um saco que usa para distribuir carvão, beterrabas ou cebolas pelas crianças que não merecem chocolates. O saco pode mesmo servir, segundo algumas versões, para levar consigo as crianças mal comportadas. Compreende-se o pavor que isto possa gerar nalgumas mentes infantis. Sendo que, para tornar as coisas ainda piores, o Pedro é por vezes representado com cornos e uma cauda.
Desconheço o que terá estado na origem de tão peculiar mitologia. O que sei é que, todos os anos, no dia 6 de dezembro (ou no fim de semana mais próximo), esta dupla improvável desembarca no canal de Bruxelas e dirige-se em cortejo solene à Grand Place, onde sobe à varanda mais cerimonial para ser adorada por uma multidão de crianças em êxtase – e com os estômagos a abarrotar de chocolate.
Confesso que não assisti a tal acontecimento ao vivo. Mas assisti a uma outra tradição da época que tem lugar na mesma praça: o espetáculo de luz e som que, de meia em meia hora, põe a Grand Place a fervilhar de ritmo e cores vibrantes. E que este ano rivalizava com um outro espetáculo de luz, mesmo ali ao lado, projetado sobre a fachada da igreja de Sainte-Catherine. Ambos merecedores de uma visita (ou mais) e cercados por um extenso e labiríntico mercado de Natal. Num domingo à noite em que por lá andava a passear deparei-me ainda um longo e festivo corso natalício a desfilar pelas principais artérias do centro da cidade, para deleite de muitas crianças e respetivas famílias. Não importa se anoitece cedo, se está frio ou se o nível de alerta continua elevado: em Bruxelas o Natal celebra-se na rua!
VISTO DE FORA:
Dias sem ir a Portugal: estou em Portugal, a passar a quadra.
Nas notícias por aqui: confesso que não faço ideia do que passa em Bruxelas por estes dias.
Sabia que por cá: parece que houve um baby boom no final de agosto de 2016. Este súbito pico de nascimentos ocorreu justamente 9 meses depois de a cidade de Bruxelas ter estado em lockdown durante 4 dias, no final de novembro de 2015, com vista à captura de um terrorista envolvido nos atentados de Paris. Quem diria que a ameaça terrorista produziria este efeito positivo na natalidade?
Um número surpreendente: 7, foram os mercados de Natal que eu visitei entre novembro e dezembro, em 3 países diferentes.