Há vários anos que passo mais tempo na parte sul do mapa-múndi. Sul, se estivermos a ler o mapa clássico, com a Europa no norte. O mapa-múndi dos australianos, por exemplo, tem o nosso norte no sul e o sul deles está no norte. Detalhes à parte, tenho andado sobretudo por África, com algumas passagens pela Europa.
Residia em Londres quando, em janeiro de 2015, Paris testemunhava o atentado contra o jornal satírico Charlie Hebdo. Não era o primeiro atentado terrorista que acontecia na Europa. A lista dos atentados terroristas na Europa tem décadas: Itália nos anos 70, Espanha com a ETA e, claro, a Grã-Bretanha com o IRA. Mas os atentados do presente são contra todos, não têm razões geográficas e de independências. O formato e as razões dos atentados praticados por grupos islâmicos extremistas tornaram a Europa num alvo permanente sem qualquer regra.
Na altura do atentado contra o jornal francês, participei em Londres nas várias vigílias de solidariedade. Comovi-me com os franceses que no meio de Londres cantavam as suas canções francesas e choravam. Comovi-me com os ingleses mais velhos que ainda se lembravam da II Guerra Mundial e das bombas alemãs que destruíram a sua cidade. Uns meses mais tarde já estava a viver em Quelimane (Moçambique) quando a 13 de novembro o Estado Islâmico matou 137 pessoas e feriu outras 400 no atentado à sala de espetáculos em Paris. Nos vários momentos em que o mundo acordou chocado com o terror, mesmo estando longe, escrevi nas redes sociais indignada e ao mesmo tempo triste. Mas estava longe.
Em Quelimane tudo isto fica longe, muito longe. As preocupações são outras. A guerra não declarada entre a Renamo e o Governo de Moçambique é uma guerra real nas províncias do norte e do centro que é por onde ando em Moçambique. A não-guerra em Moçambique está à minha porta. Um dos locais dos ataques fica apenas a 100 quilómetros da minha casa em Quelimane. Mas esta guerra fisicamente próxima de mim, ironicamente, dá a impressão que está longe. Longe porque se sabe que a guerra é limitada a zonas específicas das províncias e sabemos (mais ou menos) quem luta com quem. Ao contrário esta guerra na Europa é invisível. Está em todo lado e não está. Passamos a desconfiar de todos, no metro, no café, nos jardins. Somos todos suspeitos e todos somos potenciais vítimas. Após o atentado em Bruxelas deste ano, telefonei a vários amigos e felizmente nenhum tinha sido diretamente atingido pelo atentado. Os restantes amigos anunciaram no Facebook ‘estou bem’. Mas muita gente que eu não conhecia não estava. Rostos de crianças, homens e mulheres, velhos e novos passaram a ser rostos das vítimas.
Esta semana, quando cheguei a Paris, ainda não tinha pensado em nada disto. Estava guardado lá atrás na memória e o meu cérebro não tinha relacionado com a ida a Paris. Mal cheguei ao aeroporto, o aparato de polícia rapidamente transportou a memória dos atentados para a frente do meu cérebro. E depois foi sempre assim, sempre a ser recordada de que estava num país que está em Estado de Emergência. Quando levantei o meu cartão de identificação para a conferência onde ia participar, foi-me dito que eu não poderia participar nas sessões que apareciam sem estrelas azuis. Olhei para o cartão e mais de metade da lista de eventos não tinha estrela. A senhora explicava a todos os participantes e pedia paciência, que não era por falta de espaço mas porque não tinha sido feito ‘security check/verificação de segurança’. Caminhando pelas ruas de Paris a nossa atenção fica dividida entre as montras e as luzes de Natal e a polícia equipada com equipamento de guerra. Não me lembro de ter visto um polícia sem metralhadora. Entrar em qualquer sítio exige que sejamos revistos e revistos. Quem é? Para onde vai e o que leva? Os seguranças simpáticos tentam minimizar a tensão destes momentos com a frase que na verdade não ajuda ‘desculpe mas sabe que estamos sob ameaça terrorista’.
À noite, liguei a televisão e a BBC anunciava que Londres estava em alerta máximo devido a ameaças de terrorismo e informava de que, na Holanda, um jovem foi preso com equipamento para uma bomba-suicida. E, a olhar para o ecrã da televisão, não reconheci a minha Europa, a minha Europa mudou.
Nestes dias perguntei a amigos franceses e belgas se as suas vidas tinham mudado com este alerta permanente. Os olhos diziam que sim mas a racionalidade tentava minimizar as mudanças. Sim, mas a vida continua, diziam. Uma das minhas amigas, com o seu filho bebé, não foi atingida na explosão no aeroporto em Bruxelas porque se atrasou e foi já no táxi, a caminho do aeroporto, que ouviu que o aeroporto tinha sofrido varias explosões. Voltou para casa.
A minha Europa mudou e não foi para melhor. O medo pode não se expressar, mas manifesta-se. Manifesta-se sobretudo em não querer os ‘outros’ – mas quem são os outros e quem somos nós? Marine Le Pen propôs esta semana que os filhos de emigrantes comecem a pagar a sua educação. O medo vai construir muros muito mais perigosos e altos do que o estúpido muro que o futuro presidente Trump quer construir entre a América e o México. O medo constrói muros entre nós e os outros, mas os outros somos nós e nós somos os outros. São muros invisíveis de ódio e medo. E, enquanto os muros de tijolos se derrubam, os muros de populismo e medo crescem e tornam-se labirintos para a humanidade. Esta Europa preocupada com o medo entre as suas fronteiras faz também com que a Europa não olhe para as outras guerras, como esta guerra em Moçambique à minha porta. Estas guerras fora da Europa não tem espaço nos noticiários europeus e se o tiverem são em pequenas notas de rodapé.
A guerra da Síria é notícia mas cada vez mais reduzida aos os tais ‘outros’ – os milhões de refugiados que estão a chegar à Europa. Como uma amiga de Belgrado me descrevia, todos os dias chegam milhares de refugiados à sua cidade. Dormem nos jardins e nos cantos da cidade, mesmo com as temperaturas negativas. ‘Eles só passam pela Sérvia, sonham chegar à Alemanha’, dizia e explicou que não querem ir para os campos de refugiados porque também eles têm medo de ‘nós’. Temem que o ‘nós’ os envie de volta para o inferno de onde fugiram.
É Natal para os cristãos e Hanukkah para os judeus e não sei se alguma data para os muçulmanos. Mas todos os que rezam, seja a Deus ou a Adonai ou a Alá, por favor rezem para que este medo não nos destrua como humanidade. Não percebo muito de cada deus, mas não acredito que haja um único que pregue o ódio. Não culpem qualquer dos deuses pela maldade dos homens.
Em Portugal ainda estamos longe desta Europa, mas é uma distância ilusória. Esta Europa está mesmo ao virar da nossa esquina.