Quando estou em Portugal, não passa um fim-de-semana em que não agradeça profusamente à Sonae por ter devotado tanto esforço a criar esses magnetos de indolentes a que chamamos centros comerciais. Sem eles as minhas aventuras em alegre comunhão com a Natureza eram – de certeza – menos divertidas e introspectivas, porque é difícil a introspecção quando se está rodeado de gente. Portugal é um país lindo, mas tem montes de portugueses – e durante as férias tudo piora porque tem montes de turistas e de portugueses fartos de turistas. Em suma, sem centros comerciais as nossas paisagens pareceriam centros comerciais. Obrigado, Sonae.
Quando venho para a Noruega, é o oposto. Os centros comerciais estão quase sempre semi-vazios e à Natureza só se pode ir literalmente nas horas de expediente, porque findo o horário de trabalho a Natureza enche. A primeira coisa que os noruegueses fazem sempre que têm mais do que 15 minutos disponíveis é calçar umas botas e ir dar uma volta a pé, de preferência a subir. Independentemente da meteorologia, ninguém passa um dia sem dar um passeio. Como a Noruega é o país mais acidentado do mundo, é praticamente impossível dar voltinhas a pé sem bordejar o alpinismo. Na Noruega quem tenha vertigens fica em casa. Sózinho.
À escala planetária, passear na Natureza está-se a tornar um luxo. A humanidade cobre, anualmente, uma área quase equivalente a um Portugal e meio com betão – um material cujo impacto ambiental seria aceitável (o betão tem a menor pegada ecológica de todos os materiais de construção conhecidos) se a enormidade do seu uso fosse menos destravada; a produção de cimento contribui 5% para a emissão antropogénica global de CO2 (só a China perfaz 3% deste total). Embora há meia dúzia de séculos os seres humanos fossem biologicamente irrelevantes para o planeta, transformámo-nos no maior predador da história do Universo. Em termos de estragos, não temos concorrência – era preciso chocar com um asteróide muito grande para conseguir fazer pior. Presentemente um quarto da produção biológica total do planeta é dedicada às nossas necessidades – os nossos corpos todos juntos perfazem um terço da biomassa do planeta, mas as espécies animais que criámos para nosso usufruto são a quase totalidade dos dois terços remanescentes. Os animais selvagens não são, neste momento, mais que 5% da biomassa total e – pelo andar da carruagem – a biodiversidade que tantos tão zelosamente gostariam de preservar tem os dias verdadeiramente contados. Deus pode ter criado a terra e os céus, mas o Homem tem afanosamente dado cabo do serviço.
Esta pressão demográfica não é, contudo, aparente na Noruega. Somos meia dúzia de gatos-pingados num país tão comprido que tem de ser partido em dois para caber nos mapas. A natureza não só predomina como não pensa duas vezes antes de despachar os incautos. As montanhas despencam nos fiordes e quem não congele nos cumes tem sempre uma bela oportunidade de congelar no mar. E há montes de maneiras para ir directamente do cume congelado para o mar gelado a velocidade terminal. Das forças da Natureza, a única que assusta os noruegueses (e com a qual os portugueses desenvolveram uma inusitada capacidade de lidar de forma lúdica) são as ondas do mar (e.g. Atlântico) – porque nos fiordes não há ondas como as que alegram os nossos dias de Verão. Nas praias de Portugal é super fácil detectar um norueguês: é o que vira as costas à onda errada, no pior momento possível.
Ser norueguês é viver num país que vota grande parte da sua geologia a criar armadilhas, com clara preferência por aquelas que se revelem efusivamente mortais. Quando um português sai de casa para dar uma voltinha leva dois euros (para tomar um café à ida e um café à volta). Em contrapartida, nenhum norueguês sai de casa sem uma mochila com uma muda de roupa e matpakke, que se traduz livremente por “refeição portátil mas substancial”. Na primeira reunião de pais da “infantil” da Anna – a nossa fiha mais velha – discutiu-se que tipo de faca de mato seria melhor para os miúdos, que na altura não tinham mais cinco anos e passavam o dia alegremente pendurados nas árvores da floresta fizesse chuva ou fizesse neve. É com masculino orgulho e alguma apreensão que noto o brilhozinho dos olhos do meu filho Filipe quando esventra os peixinhos que pesca, os dedos imersos no sangue a latejar. Fico sempre à espera de o ver a seguir com a boca cheia de escamas; é meio-viking-meio-português, tudo boas metades. Podem ser os genes a fazê-los assim, mas o ambiente valida-os.
A idiosincrasia mais engraçada da forma norueguesa de privar com a natureza encontra-se resumida na dita “ideologia da cabana” – a hytte kultur. Mesmo para o mais sofisticado dos noruegueses, o cúmulo do idílico é passar o fim de semana numa cabana de madeira no meio do mato mais remoto, a cheirar a lareira, a comer enlatados e a ver a erva a crescer ao som dos passarinhos. No Inverno não há erva nem passarinhos, mas a neve não falta e por isso esquia-se alegremente do carro até à cabana, da cabana até à casa-de-banho, da casa-de-banho até à cabana. Até há pouco tempo, era de mau-tom ter casa de banho funcional dentro da cabana: “ir à casinha” – um eufemismo ainda por vezes usado entre nós – tem aqui uma expressão dolorosamente laboriosa. Por norma, quanto mais sofisticado o norueguês, mais básica a sua cabana. As melhores são as que ficam em lugares virtualmente inacessíveis, onde a melhor forma de chegar seria de helicóptero, não fora o caso dos meios de transporte motorizados serem proibidos nas florestas da Noruega. Na senda da paz e do sossego, os noruegueses abandonam as cidades nos fins de semana em busca de comunhão com a sua floresta primordial. É uma espécie de lembrete da vida até há pouco tempo precária e difícil por estas paragens, que formou – a um tempo – a resistência nórdica e o seu espírito inusitadamente comunitarista. Em Portugal não precisamos destas coisas; obrigado Sonae.
VEJA O VÍDEO (dos Ylvis, os Gatos Fedorentos da Noruega), que dá uma ideia muito aproximada do que é a hytte kultur]
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: demasiados (quase 100)
Nas notícias por aqui: Notícia de hoje dá destaque à carta aberta publicada por 370 economistas de topo advertindo os votantes americanos contra as falácias e desvios propagados por Donald Trump durante a campanha eleitoral que ocupa aqui diariamente as primeiras páginas de todos os jornais.
Sabia que por cá : Na Noruega o uso de veículos motorizados nas estradas e caminhos florestais (ou off-road) é estritamente proibido.
Um número surpreendente: A percentagem de pessoas que frequentemente sai de casa para ir passear na floresta é ligeiramente superior a 80% da população total; as mulheres fazem-no com uma frequência ligeiramente superior à dos homens.