“Brincarei ainda na infância/ lembrando-me agora? E que recordação/me pesa a esta hora?”, de Manuel António Pina
Aprendi a aprender. E foi quando desaprendi o que antes a escola me tinha ensinado (que foi pouco), que pude finalmente aprender mais e melhor. Ainda hoje. O que sei devo-o quase sempre às pessoas. Ao que me disseram, como me escutaram, à maneira como me permitiram errar, sobretudo quando achava que estava bem certo, e também quando me viram cair para depois, talvez de longe (nunca demasiado perto), me ajudarem a levantar.
Quando era criança, adolescente até, celebrava o final das aulas da mesma maneira que corria mal se ouvia na escola o segundo toque e o professor tardava ou não aparecia: fugindo para a frente, procurando a liberdade imensa do espaço em diante, o prazer infinito do tempo que falta, o gozo ainda não compreendido de poder voltar a ser eu. As férias de verão: devo-lhes o melhor de mim, a maneira como cresci e aprendi a, lentamente, olhar e a conhecer-me e, ainda mais vagarosamente (porque elas eram imensas), a ver os outros, o mundo, a querer descobri-los para além da vulgar pessoa que era, que sou. Não é exagero o que escrevo. E, breve parêntesis possível, se agora escrevo é porque não sei de gramática, muito menos a que hoje os filhos ouvem na escola: milagre do cérebro, o poder esquecer, a memória depurar e, depois, mandar embora. Dar espaço ao que é tão-só importante.
Quando era criança ou adolescente, fugia da escola o mais que podia, depois de a cumprir com esforço, bastante rotina, devota persistência e renovado desinteresse. Mesmo dela, o mais que me lembro era o tempo do que vivi no que agora os mais novos não têm: os minutos de “férias” que os intervalos de dez minutos sincopadamente batiam após os longos 50 de cada aula anterior. Contava, riscando dias até chegar junho, o mês de calor em que tudo (re)começava.
Foi nas férias de verão que, muitas vezes, aprendi a crescer quando podia estar sozinho. E a brincar, jogar, procurar, imaginar, fazer qualquer coisa até chegarem os outros com quem, de seguida, se preenchiam os dias: os de Coimbra, os do Porto, os de Aveiro, os outros de Lisboa como nós, os suíços que não podiam faltar e a quem devo o meu breve francês. Aprendi também a arte da espera, pois não havia telefone, nem campainha, nem televisão. O avô não queria. Era médico e mantinha o “método”. Tinha um saber enciclopédico que não exibia, estendia aos nossos pés, na arte cuidadosa de explicar. Não sei o quê, podia ser tudo, talvez nada. Beethoven e Karajan, as constelações quando à noite o céu estava límpido, as obras completas de Eça de Queirós, os passeios pelo paredão ou a rápida, irónica piada. Aprendi a respeitar a diferença. Todos tínhamos gostos diversos, vidas diferentes, estilos não comparáveis. E aprendi da vida o que tantos, os mais simples, nos ensinam de forma direta, frontal, sábios despidos do pretensioso ar mundano que poderíamos (ainda) levar da escola, da cidade que habitávamos e que se acha a si mesmo o centro de tudo.
Aprendi a deslocar o centro para fora de mim. Porque também não havia férias sem partida, de carro, duas a três semanas pela Europa fora, onde fui fixando outras partes do mundo que ainda agora sei (quase) dizer de cor, com os olhos fechados e as memórias fixadas para sempre, sem ser preciso decorar nada, para nada, pois isso não é aprender, é colar. Isso é ser um corpo vazio de mente e de afetos, sem ligações profundas ao que realmente importa e de forma segura nos toca e fica, para sempre. As férias traziam-me de volta a mim, à vida. Devo-lhes o prazer de existir. Por isso, a todos os que agora ainda são pequenos, desejo-lhes o mesmo: férias felizes!
(Dedico esta crónica à memória do João Pedro Dias, 1964/2022, o primeiro de nós a partir, assim de repente e antes das férias, o tempo em que mais uma vez o poderia melhor recordar).
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