O problema da falta de habitação, a preços suportáveis pelas famílias, nunca será resolvido pelo mercado imobiliário. A solução para essa crise gritante é da competência do Estado, a quem cabe a obrigação de garantir o direito à habitação para todos. Esta não é, ressalve-se, uma afirmação de cariz ideológico. Trata-se somente da constatação de uma realidade, cada vez mais transversal e crescente nos países desenvolvidos. Em toda a Europa assiste-se, nos últimos anos, ao regresso cada vez maior do papel do Estado, quer através dos governos centrais quer dos locais, na regulação e controlo do mercado de habitação. E isso ocorre, em simultâneo, tanto nos países com governos socialistas ou social-democratas, como nos conservadores, democrata-cristãos ou até onde qualquer um deles está em coligação com os liberais – como acontece, no último caso, na Alemanha, onde o executivo “arco-íris” de Berlim (socialistas, liberais e Verdes) pretende construir 400 mil casas até 2026, num projeto de 14,5 mil milhões de euros, como forma de tentar minimizar o problema.
Na Europa, tanto nos governos de esquerda como nos de direita, percebe-se que cresce a necessidade de intervir mais diretamente no mercado da habitação. E o que isto significa, na prática, é o assumir de um erro generalizado e cujos custos estão agora a ser pagos pelas gerações mais jovens, que se veem impedidas de alcançar o direito básico à habitação: a convicção de que o mercado iria resolver tudo, e que o Estado só teria de se preocupar com as casas para os mais desfavorecidos ou carenciados. Não foi isso que aconteceu. E os resultados estão à vista: atualmente, na maior parte das principais cidades europeias, tornou-se quase impossível o acesso à habitação por parte das gerações mais jovens, de classe média e em início de vida profissional. Não é só em Lisboa ou no Porto que soam os alarmes – eles ecoam também, e por vezes de forma ainda mais sonora e com medidas mais radicais, em Amesterdão, Berlim, Copenhaga ou Dublin. E, cada vez mais, é dado o exemplo de Viena, a capital austríaca considerada nos estudos mais recentes como a melhor cidade para se viver e onde 80% dos seus 1,7 milhões de habitantes residem em casas arrendadas, a preços controlados e que não ultrapassam os 25% do rendimento de cada família. E onde, eliminado o estigma da “habitação social”, o governo local e as cooperativas de habitação são os maiores senhorios.
Se olharmos com um mínimo de atenção, percebe-se que o pacote de apoio à habitação apresentado na última semana por António Costa não tem, propriamente, uma inovação genial, daquelas capazes de fazer com que o resto do mundo olhasse para nós com espanto e curiosidade. Apesar do alarido e de diversas indignações, as medidas previstas no programa Mais Habitação, das mais aplaudidas às mais polémicas, são apenas uma espécie de resumo de tudo aquilo que já está a ser tentado por essa Europa fora ou, em alguns casos excecionais, estão em vigor há anos. A grande diferença é que há demasiado tempo que não se fazia nada em Portugal e agora parece que o plano é o de querer fazer tudo de uma vez – felizmente, a discussão pública que agora se iniciou vai permitir tornar as opções mais claras, atirar algumas medidas para o caixote do lixo e quantificar o verdadeiro alcance de todas as outras.
Como acontece com cada vez maior frequência nestes tempos de crescente polarização, corre-se o risco de o debate ficar centrado nos pormenores ou nas propostas que, pelos seus contornos, mais estimulam o debate ideológico, por configurarem maiores dúvidas na relação entre o Estado e a propriedade privada. É o caso da ideia do arrendamento compulsivo de casas vazias, proposto pelo Governo e que tanta celeuma tem causado. Mais uma vez, no entanto, não se trata de uma ideia inovadora: não só já foi tentada em Lisboa, sem êxito, como está em vigor na Dinamarca – onde, ao fim de apenas seis semanas, os proprietários têm de comunicar à autarquia que a sua casa está vazia e, portanto, disponível para arrendar – e também faz parte das medidas atualmente em estudo pelo governo irlandês, tantas vezes elogiado como um arauto do liberalismo, mas que tem a sua sobrevivência em risco, nas próximas eleições, por causa precisamente da crise na habitação, entre os jovens.
Não adianta discutir se há muito ou pouco Estado nesta questão. É preciso ter a humildade de reconhecer que o problema só se resolve através da intervenção do Estado – de preferência em colaboração com o resto da sociedade, estimulando parcerias com o setor privado, mas definindo também regras rígidas – draconianas, caso seja necessário – para impedir os abusos e a ganância desenfreada. Para haver mais casas, é necessário que o Estado regresse à casa… de partida: com regras, planos e estímulos. E depois, a partir, daí, deixar a sociedade funcionar e organizar-se.
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