A canção dos Smoke City empresta-me o título a este artigo. Amada por (quase) todos, Lisboa é, de tempos a tempos, um “amor debaixo de água”, depois de séculos de desconhecimento, erros básicos, dolo e negligência, que se traduz na construção em zonas de leitos de cheia de rios e de ribeiras e uma impermeabilização implacável dos terrenos, impedindo o escoamento natural de água na topografia especial da cidade das sete colinas.
As imagens dos últimos dias impressionam: há ruas transformadas em rios, barcos de salvamento em artérias da capital, túneis que viraram piscinas, estações de metro submersas. Muitos danos patrimoniais, casas alagadas, negócios parados. Mas o que presenciamos agora não é único e não é novo. A história da cidade, como aliás a história de Algés e de Cascais, ali ao lado, e a de tantas outras regiões do País, mistura-se com episódios de grandes cheias, algumas dramáticas, como a de 1967, que afetou também a área até Alenquer e fez sete centenas de vítimas.
Muitos especialistas andam há muito a alertar para o facto de este ser um problema estrutural da cidade e a pedir medidas preventivas, começando pelo visionário Gonçalo Ribeiro Telles. Foram esquecidos ou convenientemente ignorados na hora de se aprovar edificações em zonas que, já há várias décadas, a Ciência desaconselhava.
Mas, se o problema não é único e não é novo, foi preciso chegar ao século XXI para que se começasse a olhar para ele com mais atenção. Desde 2002, quando o plano de drenagem de Lisboa começou a ser pensado, que se sucederam seis presidentes de câmara – Pedro Santana Lopes, António Carmona Rodrigues, Marina Ferreira, António Costa, Fernando Medina e Carlos Moedas – e, duas décadas volvidas, ainda nada está construído.
Entre 2008 e 2014, António Costa não conseguiu avançar com o projeto, justificando-o com a difícil situação financeira da capital, e só em 2014 foi feito um novo plano, aprovado no ano seguinte, no qual, entre outras medidas, se aconselhava a construção de dois grandes túneis para escoar a água de Monsanto para Santa Apolónia e entre Chelas e o Beato. Em 2016, já com Fernando Medina, começou a conceção da obra, veio o concurso para a construção e assegurou-se o financiamento do projeto. Quando chega, no ano passado, à Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas herda um problema arrastado mas também um projeto já desenhado, aprovado e com financiamento assegurado – e agora precisa apenas de executá-lo. O custo total do plano de drenagem ascende aos €250 milhões – inscritos já no orçamento da autarquia.
Mais do que fazer deste tema uma arma de arremesso político, é preciso olhar para a frente. Fenómenos extremos são característicos do nosso clima, com ocorrências ocasionais de chuvas de grande intensidade, mas infelizmente são cada vez mais frequentes. A culpa não é obviamente das alterações climáticas; os efeitos destas é que se podem fazer sentir com mais frequência nas cidades com problemas estruturais.
Mais uma vez, é preciso ouvir os especialistas e perceber que, só por si, os túneis não vão impedir, ao contrário do que se tem dito, que novas situações voltem a acontecer.
É preciso construir mais zonas de permeabilidade, mais poços de infiltração e mais bacias de retenção. E é preciso apostar na prevenção, na limpeza obsessiva das sarjetas, na formação das populações. Como bem explica o climatologista Carlos da Camara, estes fenómenos momentâneos e localizados, extremos, relacionados com a instabilidade atmosférica, não são previsíveis com grande antecedência – a margem para se dar o alerta é da ordem dos minutos. É essencial ter sistemas de alerta eficientes para autoridades, câmaras municipais e populações, tal como acontece com os tornados nos EUA, por forma a entrarem em ação de imediato, a encerrarem túneis e estradas e a retirarem de sítios vulneráveis as pessoas. Razão tem também José Luís Zêzere, do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, que diz que as alterações climáticas têm as costas largas, porque camuflam as culpas de agentes com responsabilidades. Não restem dúvidas: vamos todos ter de aprender a lidar melhor com situações extremas, desde o planeamento, passando pela prevenção até à forma de reagir. Falar apenas da construção de túneis, como se fossem a panaceia para todos os males, é uma estratégia de comunicação que tenta tapar o sol com a peneira.
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