A pandemia deixou-nos mais intolerantes e com menos paciência para ouvir opiniões contrárias? Será que os sucessivos períodos de isolamento e as regras para evitar contactos próximos nos fizeram fechar mais em nós próprios, levando-nos a criar “cordões sanitários” em relação a quem pensa de maneira diferente? Pode ser uma perceção errada, porventura, mas acredito que não serei o único, nos últimos tempos, a ser assaltado por estas dúvidas e inquietações. E também não serei, acredito, o único a sentir-se cansado com o ambiente de guerra permanente que temo estar a invadir, irremediavelmente, o espaço do debate público, onde todos os assuntos – por mais importantes ou triviais que sejam – parecem ter sempre uma trincheira funda a separar os intervenientes na discussão.
É verdade que a invasão russa da Ucrânia agravou ainda mais este clima de crispação permanente, o que até pode ser compreensível, perante um conflito que abalou a nossa segurança, ameaça o equilíbrio mundial e já está a ter consequências gravosas no custo de vida de mais de metade da população do planeta. E uma guerra, como sabemos, tem esse papel: instiga ao confronto, desperta ódios, cria linhas divisórias irredutíveis entre aliados e inimigos. Só que também, face à guerra, é preciso não perder o discernimento. E se há algo a que o horror nos devia convocar era a questionar muitas das “certezas” e “verdades” que antes considerávamos indiscutíveis ou razoáveis.
O que não podemos aceitar é que todos os temas e assuntos sejam abordados como se estivéssemos a discutir a guerra. Ainda para mais, como está a acontecer nesta invasão, quando se reduz, a cada dia que passa, o espaço para qualquer intervenção ou solução diplomática.
Não é admissível, por isso, que um debate – necessário – sobre a mobilidade nas cidades acabe por se radicalizar e cair numa insanidade argumentativa só comparável ao que se vê e escuta em relação à guerra. Como se fosse sempre necessário fazer apelo às armas e lançar ataques. De repente, aquilo que devia ser uma discussão serena sobre o quotidiano dos cidadãos, centrada na qualidade de vida, descamba numa batalha campal entre os “militantes” das bicicletas e a “brigada” dos automóveis. Como se não fosse possível existir uma coabitação normal e serena entre os dois, um ponto de equilíbrio que garantisse a procura de soluções e não apenas a derrota do opositor.
O caso ganha ainda contornos piores quando, como sucede com a propaganda de guerra, se esgrimem dados cuja origem não se conhece; mostram-se “estudos” vindos do nada e as opiniões passam a ter o valor de factos – como por magia, mas sem o mínimo pudor.
Sejamos claros: o debate sobre a redução dos limites de velocidade nas cidades só peca por tardio em Portugal. Na maioria das cidades europeias, essas medidas já foram há muito discutidas e, em grande parte delas, já entraram em vigor. E, em todas, os motivos foram os mesmos: reduzir a emissão de gases com efeito de estufa e diminuir o número de vítimas mortais de atropelamentos nas ruas. Mais: desde o início da guerra na Ucrânia, este tipo de medidas passou a ser encorajado também em diversos documentos oficiais da União Europeia como forma de baixar o consumo de energia – algo cada vez mais necessário não só para o combate às alterações climáticas como para reduzir a dependência dos combustíveis importados da Rússia. A União Europeia adotou ainda, no ano passado, a estratégia Visão Zero, que tem como objetivo reduzir as mortes nas ruas e estradas a quase zero até 2050 – sempre com a questão da diminuição dos limites de velocidade como um dos meios principais para o conseguir.
Surpreendentemente, em Portugal, ainda há quem veja a discussão sobre a redução dos limites de velocidade nas cidades como uma bizarria – o que é só uma prova eloquente da falta de mundo que grassa em muitas das nossas elites. O resultado de tudo isto é o enfraquecimento de um debate necessário e urgente. Assim, em vez de estimularmos a participação das pessoas no destino das cidades onde vivem e trabalham, estamos apenas a contribuir para que a discussão se torne mais insana, furiosa e, por isso, inútil. O debate que interessa é sobre a qualidade de vida nas cidades, com maior sustentabilidade, melhor saúde e uma economia local mais dinâmica. Não perceber que isso passa por uma cidade mais para as pessoas do que para os carros é não perceber o mundo em que vivemos.