Há precisamente 20 anos, em abril de 2002, passei uma semana em Paris e seus arredores, ao serviço da VISÃO, a tentar tomar o pulso a uma sociedade que estava então a acordar de um “choque” inesperado: a passagem de Jean-Marie Le Pen, líder da extrema-direita e assumidamente racista e xenófobo, à segunda volta das eleições presidenciais francesas, após ter ultrapassado, para surpresa geral e por apenas 0,8% dos votos, o então primeiro-ministro socialista, Lionel Jospin – que todas as sondagens davam como o vencedor incontestado, na decisão final perante um desacreditado e gasto Jacques Chirac. Desses dias intensos e surpreendentes, guardo a memória do espírito de indignação geral que se vivia. Respirava-se um misto de revolta e de vergonha, com permanentes apelos à mobilização geral e ao velho espírito revolucionário francês. Havia concentrações permanentes de indignados na emblemática Place de la République, saíam manifestações constantes dos liceus e das universidades, e na comunicação social praticava-se um jornalismo comprometido com a defesa da democracia e dos pilares fundamentais da república, com todos os jornais e revistas a apelarem a uma derrota histórica de Le Pen, na segunda volta. As primeiras páginas do jornal Libération, por exemplo, eram pensadas, então, como autênticos cartazes que depois podiam ser empunhados nas manifestações. E até a rede de lojas FNAC exibia pósteres, nas suas montras, a apelar ao voto “contra todas as intolerâncias”, nos quais se citavam algumas das passagens mais chocantes do programa da Frente Nacional – nomeadamente aquela que preconizava que os artistas “devem obedecer a regras”…
A mobilização resultou nessa altura e Le Pen acabou esmagado nas urnas, por um Jacques Chirac que a maioria dos franceses não queria reeleger, mas a que se sentiu obrigada a fazê-lo (com mais de 80% dos votos e menos de 20% de abstencionistas), só para demonstrar que a França ia continuar a ser o país da Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
A história, no entanto, não acabou aqui. Vinte anos depois, a filha de Jean-Marie tem sérias possibilidades de poder ser eleita Presidente de França, no dia 24 de abril. E já se percebeu que o ainda Presidente, Emmanuel Macron, apesar da sua vitória clara há cinco anos e da intensa atividade internacional que marcou o seu mandato, não consegue reunir em seu redor a ampla frente republicana que, mesmo a contragosto, se uniu em torno de Chirac.
É verdade que, em comparação com o pai, Marine Le Pen adocicou o discurso, arredondou o verbo em algumas exigências e preferiu fazer do custo de vida a sua bandeira principal junto dos eleitores, deixando os temas fraturantes para segundo plano. Mas não é isso que faz a diferença em relação ao que se passou há duas décadas. O seu programa continua com os mesmos tiques de sempre da família Le Pen, com propostas que são autênticos atentados ao Estado de direito e outras que vão contra o Direito europeu, como a completa subversão do princípio da separação de poderes. Como o pai, Marine quer fechar a França aos imigrantes e dar direito de preferência aos franceses “puros”, penalizando os de dupla nacionalidade (como milhares de luso-franceses). Caso fosse eleita, fecharia o Espaço Schengen, pondo fim à livre circulação na União Europeia, denunciaria o pacto verde europeu que prevê a neutralidade carbónica até 2050 e até já anunciou que, se chegar ao Eliseu, mandará retirar todas as torres eólicas do país, apostando tudo no nuclear. Com ela no poder, a França estabeleceria uma parceria estratégica com a Rússia e, naturalmente, impediria qualquer sanção europeia a Vladimir Putin e aos oligarcas russos.
Nada disto é uma agenda “escondida”. Está tudo escrito no programa de Marine Le Pen e, se quiserem e tiverem interesse nisso, todos os franceses o podem ler. A grande diferença, face ao que ocorreu há 20 anos, é que agora a hipótese de uma candidata antidemocrática e antieuropeia poder ser Presidente já não cria a mesma indignação e revolta. Já não há “choque”, apenas se sente resignação – ou porventura, até, submissão. Vinte anos depois, as propostas racistas e xenófobas, a aliança com os inimigos da democracia e a instauração de um Estado securitário tornaram-se banais para, no mínimo, quase metade dos franceses. O que raio terá acontecido à democracia quando nos resignamos, sem sobressalto, à hipótese de ela desaparecer?