Ninguém consegue prever, com exatidão e um mínimo de decência intelectual, todas as consequências que esta guerra vai ter para o mundo e para as nossas vidas. Ainda está confinada a um espaço geográfico limitado, no Leste da Europa, mas as ondas de choque da invasão russa da Ucrânia são globais. E, dia após dia, em apenas seis semanas, têm abalado, uma a uma, as estruturas em que assentou o equilíbrio político e económico das últimas décadas. E como também ninguém pode prever, com um grau aceitável de certeza, por quanto mais tempo se vai prolongar este sismo global – ou se irá escalar para algo ainda mais planetário e terrível –, ninguém tem ainda os dados suficientes para adivinhar as transformações que nos esperam. Há algo, no entanto, sobre o qual podemos ter a certeza, sem receio de nos sentirmos mais tarde enganados: depois desta guerra, o mundo não voltará a ser o que era.
Estamos a viver aquilo a que já se chama um momento de viragem na História. Após dois anos em que o tempo parecia ter ficado congelado, por causa da pandemia, vivemos agora um momento de aceleração vertiginosa, em que os acontecimentos se precipitam a uma velocidade que ninguém foi capaz de antecipar. Em consequência deles, é preciso repensar quase tudo, até porque começa a ser evidente que estamos a assistir também ao final da globalização que marcou a vida do planeta nas últimas três décadas – e que foi responsável, não o podemos esquecer, pelo maior decréscimo da pobreza global, tirando milhões de pessoas da miséria extrema.
De repente, na Europa, a Segurança e a Defesa passaram a ser um assunto prioritário e que vai obrigar os 27 Estados-membros da UE a canalizarem mais recursos para essa missão. Ao mesmo tempo, a autonomia energética tornou-se a maior urgência estratégica, como forma de libertar metade da Europa da dependência do gás russo e, em simultâneo, acelerar as metas da descarbonização (fundamentais para evitar o anunciado desastre climático, segundo o novo relatório das Nações Unidas, divulgado esta semana). Tudo isto num ambiente económico que não é, de todo, aquele que muitos auguravam para o período pós-pandémico: a inflação está a subir em todos os países, as cadeias globais de distribuição continuam emperradas, há anúncios de catástrofe alimentar à vista em certas regiões do globo, devido à falta de cereais da Ucrânia e da Rússia, e crescem os sinais de que todas as potências e blocos político-económicos procuram agora a sua autossuficiência em vez da interdependência e da cooperação. Mais preocupante ainda: pela primeira vez em muitos anos, o espectro de uma guerra nuclear voltou à agenda e passou a ser uma preocupação de primeiro nível.
Estamos, portanto, no tempo em que precisamos de encarar tudo aquilo que considerávamos pertencer ao domínio do impensável. O tempo em que muitos dos demónios do passado voltam a estar presentes. E o tempo em que será preciso, continuamente, refazer e alterar planos – exatamente porque ninguém consegue prever como a guerra vai acabar.
É, por isso, um pouco paradoxal que, neste tempo, o novo executivo de António Costa se prepare para entrar em funções com o mesmo Programa de Governo que lhe deu a maioria absoluta nas eleições de 30 de janeiro, mas que dificilmente pode continuar atual depois da invasão russa da Ucrânia, a 24 de fevereiro. Nas 180 páginas do documento, que será discutido e aprovado no Parlamento, a guerra que assola a Europa e o mundo é apenas referida três vezes – enquanto a palavra “pandemia” surge em 43 ocasiões. E isso é sintomático da “visão” que presidiu à redação do documento que pretende ser o guia para os quatro anos e meio desta legislatura: ser um programa para o relançamento do País, após a pandemia. Só que, nesta realidade, há uma pergunta que fica, por enquanto, sem resposta: um Programa de Governo pensado para o pós-pandemia pode ser também o mais acertado para tempos de guerra?
A insistência em olhar para os planos como se estes não dependessem do que se está a passar no resto do mundo tem um risco óbvio: o de ninguém acreditar no próprio plano, por sentir que ele não responde às exigências do tempo presente nem é adequado para enfrentar a situação mais explosiva e incerta que conhecemos nas últimas décadas. O verdadeiro Programa de Governo, aquele que vai influenciar as nossas vidas, ainda não é este – será, sim, aquele que será revelado daqui a uma semanas. Chama-se Orçamento do Estado, e aí perceberemos quanto nos custará, realmente, o esforço de guerra.