“O Parlamento é uma casa mal alumiada, onde se vai, à uma hora, conversar, escrever cartas particulares, maldizer um pouco, e combinar partidas de whist. O Parlamento é uma sucursal do Grémio. A tribuna é uma prateleira de copos de água intactos. O ministério, o poder executivo, deixou de ser um poder do Estado. É apenas uma necessidade do programa constitucional. Está no cartaz, é necessário que apareça na cena. Não governa, não tem ideia, não tem sistema; nada reforma, nada estabelece; está ali, é o que basta.”
É sempre tentador voltar às Farpas na hora de inaugurar um novo Parlamento e começar, com renovada expectativa, a funcionar a casa da democracia. Felizmente, o País de hoje é bastante diferente do Portugal oitocentista e da descrição implacável que fazia Eça de Queiroz das Cortes e dos seus homens, mas é fácil encontrar alguns pontos de contacto que se prolongam ao longo dos tempos com esta caricatura de gestão da res publica.
A desilusão e o despeito que muitos hoje sentem em relação às elites e à classe dirigente nacional, tal como também em relação ao próprio povo, estava tudo nos escritos de Eça. Em certa medida, ler Eça de Queiroz é vermo-nos, no pior de nós e das nossas elites, da nossa inércia, do nosso conformismo e comodismo, ao espelho. Até lá estão a descrença e a procura de respostas alternativas que os populismos aproveitavam então, e exploram sofregamente agora. “Uma parte importante da nação perdeu totalmente a fé no Parlamento, e nas classes governamentais que o encarnam, e tende a substituí-la por outra coisa que ela ainda não definiu bem a si própria”, escrevia Eça em 1890.
Aqui estamos nós, em 2022, depois de quatro meses de letargia e regressos adiados, novamente com um Parlamento em plenas funções, essencial numa democracia saudável. Serão oito novas formações políticas, onde teremos um rosa-forte ao centro, um laranja-pálido no centro-direita, cores berrantes na ala extrema-direita, cinzentismo na ala extrema-esquerda.
Este será um novo Parlamento, sem o CDS e os Verdes, e com um equilíbrio de forças bastante diferente. O PS comparece robusto, dono e senhor da maioria que diz ser absoluta e não absolutista (é o que veremos), com alguns tribunos experimentados e pesos-pesados como ex-ministros.
Pela primeira vez, teremos como terceira força política uma bancada de extrema-direita com 12 parlamentares do Chega. Será interessante perceber as capacidades de oratória e de trabalho, a cola ideológica que os une (ou não), as causas que agarrarão e, sobretudo, o espaço que lhes deixarão ocupar os partidos à sua volta. Curioso será também ver quem ganha o despique para fazer oposição mais eficaz (e responsável): será a reforçada e energética bancada da Iniciativa Liberal, agora com oito deputados, um partido com provas dadas na capacidade de fazer “buzz” e de trazer temas para a agenda mediática, ou a bancada laranja, que comparece na estreia toldada pelos maus resultados e pela arrastada transição de liderança, e por ter sido escolhida (incluindo o novo líder parlamentar, Paulo Mota Pinto) pelo líder demissionário?
Na ala esquerda, o PCP que já se apresentaria cabisbaixo com escassos seis deputados, comparece na estreia ainda mais enfraquecido pelas posições kamikaze que assumiu no tema da guerra da Ucrânia. No Bloco de Esquerda, o mais penalizado nos resultados eleitorais com uma redução para quase um quarto dos deputados, o desafio é grande: perceber os erros e alinhavar novo discurso que funcione junto do seu eleitorado desiludido.
Aos comandos da casa, uma boa nova: Augusto Santos Silva, que combina três características essenciais para a função de segunda figura do Estado: experiência, diplomacia e assertividade.
Em tempos de maioria absoluta, o que aqui se vai passar será ainda mais essencial para escrutinar, fiscalizar e confrontar o Executivo com os seus atos de governação. A tribuna não pode ser uma prateleira de copos de água intactos, como descrevia Eça, e esta casa não pode ser um sítio de convívio e picardia, sem ideias, sem reformas e sem propostas. O que esperamos das mulheres e dos homens que iniciam a nova legislatura é que honrem cada um dos votos que lhes foram confiados. Nos dias que vivemos, precisaremos do seu empenho, e sobretudo do seu bom senso, mais do que nunca.