Guerra na Europa, regresso da inflação, subida dos juros e um ambiente global de grande instabilidade económica e política. Não era este o cenário desejado para o pós-pandemia, mas é melhor que nos habituemos a viver com a realidade e não com aquilo que queríamos que ela fosse. Não há alternativa: estamos no tempo em que precisamos de nos preparar para enfrentar uma série de ameaças que, sozinhos como País, não podemos controlar, por mais robusta que seja a maioria absoluta do governo que entrará em funções lá para abril. Por todas as razões, este é o tempo que exige respostas firmes da União Europeia, dos seus governos e instituições. O tempo em que, mais do que nunca, a unidade de um bloco criado para garantir a paz num continente dilacerado durante séculos por conflitos sangrentos terá de demonstrar, perante o mundo, a sua capacidade diplomática, a justeza dos seus valores e a sua determinação, por forma a evitar uma guerra que ninguém deseja.
De dia para dia, a situação na Ucrânia tem escalado para um nível superior de tensão, capaz de dinamitar a ordem mundial existente desde o fim da Guerra Fria e, ao mesmo tempo, tornar-se um daqueles momentos decisivos que, por efeito de rastilho, mudam o curso da História e afetam – geralmente para pior – a vida de milhões de pessoas. É impossível, nesta altura, não recordar as memórias de Stefan Zweig a propósito do ambiente que se vivia na Europa, em 1914, imediatamente antes do dealbar da I Guerra Mundial: “As pessoas já não acreditavam na possibilidade de recaídas bárbaras, como guerras entre as nações da Europa, tal como não acreditavam em fantasias e bruxas.” Nessa época, perguntava o escritor austríaco, “vivendo há quase 50 anos em paz, que poderiam saber os homens desse tempo acerca da guerra?”. Convém agora que nós, que vivemos há mais de 70 anos em paz no continente, nos questionemos sobre o que sabemos de facto sobre a guerra e as suas consequências. E, nessa medida, cabe aos europeus procurar evitar a catástrofe, sem que isso implique qualquer tipo de rendição dos seus valores.
Na batalha de propaganda entre russos e americanos que marca as últimas semanas, através da habitual troca de acusações e de desmentidos entre os dois lados, tem ficado demonstrado que, mais uma vez, a primeira vítima da guerra é sempre a verdade. No entanto, neste caso, a segunda vítima tem sido o ideal de uma Europa unida por valores e princípios, relegado que foi por Washington e Moscovo, durante quase todo o tempo, para o simples papel de espectador num conflito que ocorre no seu espaço geográfico.
Há razões históricas para isso, como sabemos – a principal das quais é o facto de a União Europeia ter abdicado de construir um sistema comum de Defesa, preferindo manter-se, quase sempre acriticamente, debaixo da asa protetora dos EUA e da NATO. E se essa postura fez sentido durante a Guerra Fria, atualmente, num tempo de redefinição de poderes ao nível global, com a China a preparar-se para ultrapassar os EUA e uma série de outros grandes países a aproveitarem-se dos vazios criados pela mudança geoestratégica de Washington, a Europa precisa de repensar o seu papel, para não se tornar irrelevante.
A crise ucraniana é a hora da verdade para a Europa. E os próximos tempos vão ser decisivos. Até porque, se a UE foi rápida – e muito bem – a avançar com sanções contra Moscovo, alguns dos seus países também irão sofrer com o refluxo dessas mesmas sanções. A Rússia é o maior exportador de gás e o segundo de petróleo e seus derivados; portanto, se as suas torneiras fecharem, a escalada de preços na energia será inevitável. E o mesmo acontecerá com outros produtos essenciais, como o trigo, de que a Rússia e a Ucrânia são dois dos maiores produtores mundiais.
Este é o momento em que a UE tem de escolher, com clareza, se Putin é um parceiro comercial ou um adversário. Se a UE pretende ter força e união para seguir um caminho próprio ou se prefere continuar dependente dos EUA, nos assuntos mais importantes de segurança e defesa. Depois da Rússia, a questão poderá colocar-se, dentro de relativamente pouco tempo, com a China, por causa de Taiwan. E, nessa altura, embora noutra geografia e com outro enquadramento histórico, a escalada de tensão corre o risco de ser muito maior e até global. Ou a UE se afirma agora, com voz e valores próprios, ou será uma das vítimas deste conflito na Ucrânia.
(Editorial publicado na VISÃO 1512 de 24 de fevereiro, fechado na terça-feira antes da invasão da Ucrânia)