A maior parte das pessoas não quer saber destes temas. Não foi com elas, não lhes diz respeito. E, no entanto, esta é capaz de ser uma das mais importantes e tenebrosas histórias do ano.
Há muito de assustador no caso Pegasus, mas mais ainda no encolher de ombros generalizado com que a história foi recebida. Por cá, fez meia dúzia de notícias, mas praticamente ninguém lhe deu a devida atenção nem causou indignação. O tema vem desenvolvido adiante na VISÃO, mas aqui fica uma súmula em poucas linhas: um spyware da empresa israelita NSO Group foi vendido a regimes autoritários e está a ser usado para vigilância massiva de adversários políticos, ativistas, jornalistas e advogados. Uma poderosa arma de vigilância massiva que Orwell teria adorado incluir no seu 1984.
No passado domingo, um consórcio global de média, onde se incluem, por exemplo, o Guardian e o Washington Post, juntamente com a ONG Forbidden Stories e a Amnistia Internacional, que tiveram acesso a quantidades massivas de dados “vazados”, revelaram que um poderosíssimo software chamado Pegasus está a ser vendido a quem quiser desembolsar alguns milhões por ele, e está já a ser usado em grande escala em todo o mundo. Não apenas contra terroristas e grandes criminosos, como defendia a empresa que lançou o “produto”, mas contra todos aqueles que incomodam quem tenha dinheiro para pagar. É da natureza humana: se existe uma arma com enorme potencial, existirá alguém que tentará usá-la. Claro, os mal-intencionados clientes não se fizeram esperar: as notícias relatam uma lista de mais de 50 000 números de telefone de pessoas identificados como “de interesse” para vigilância por clientes da NSO desde 2016.
Mais de 180 jornalistas e repórteres de investigação em todo o mundo, entre eles a diretora do Financial Times, Roula Khalaf, foram selecionados como possíveis candidatos por parte de governos que compraram esta ferramenta. Os meios de comunicação são os mais variados: Wall Street Journal, CNN, New York Times, Al Jazeera, France 24, El País, Associated Press, Le Monde, Bloomberg, Agence France-Presse, Economist, Reuters, etc. Entre os alegados clientes, poucas surpresas – Azerbaijão, Bahrein, Hungria, Índia, Cazaquistão, México, Marrocos, Ruanda e Arábia Saudita – mas um gigante embaraço (mais um) para a Europa: Viktor Orbán, da Hungria.
A tecnologia não permite “apenas” ver emails, fotos ou ouvir conversas telefónicas: permite mesmo fazer coisas com os telemóveis que os próprios proprietários não conseguem, como acionar a câmara e o microfone e gravar sem que se perceba.
Como é que chegámos aqui, é o que me intriga. A intrusão tornou-se admissível. A total e absoluta ausência de privacidade tornou-se o reverso da medalha do progresso tecnológico. A aceitação de uma possível vigilância permanente tornou-se uma inevitabilidade. Tudo isto atenta de forma escancarada contra os alicerces da democracia: o direito à privacidade, a liberdade de imprensa, a liberdade de expressão e associação, a presunção de inocência. E, no entanto, perante a absoluta perversidade, quase só indiferença.
Talvez um dia venhamos a arrepender-nos amargamente deste caminho. Talvez um dia as gerações seguintes venham a questionar-se sobre como deixámos que isto acontecesse. Ou talvez, no futuro, elas já estejam tão habituadas à devassa permanente que convivam naturalmente com isto. Não podemos saber. A mim, que devo ser pouco “moderna”, tudo isto me transtorna. Só me lembra o verso de Dylan Thomas, que não vou estragar e arriscar traduzir:
“Do not go gentle into that good night, Rage, rage against the dying of the light.”