Em tempos de dúvidas e de interrogações, há duas certezas por estes dias, em Portugal: somos um País com 10 milhões de selecionadores de futebol e com 10 milhões de virologistas. Por aquilo que se ouve e lê, um pouco por todo o lado, não há ninguém que não saiba como a Seleção de futebol deve jogar no Europeu, como também ninguém tem dúvidas sobre o que devia ser feito para se evitar a propagação do vírus que nos mudou as vidas. Mais: toda a gente sabe qual deve ser o triângulo do meio-campo português, como também todos têm a sua tática para enfrentar a variante delta que está a baralhar as contas da pandemia – em Portugal e, em breve, no resto da Europa e da América.
A verdade é que na véspera de um jogo de futebol, ou antes de se tomarem decisões sobre o processo de desconfinamento, todas as hipóteses são possíveis e plausíveis. E todas elas assentam em conhecimento: seja ele empírico seja científico. O que, no entanto, não quer dizer que as teorias e as “certezas” vão concretizar-se ou aproximar-se, sequer, da realidade.
O pior, apesar de tudo, é quando sentimos que o País se divide quanto ao que se deve fazer perante o aumento do número de novos casos de Covid-19, e, nesse debate, que escala até aos mais altos cargos da Nação, os argumentos depressa resvalam para o nível do das discussões sobre futebol – neste caso, sem a ajuda do videoárbitro e, portanto, com o desconforto acrescido de as opiniões se extremarem com base em convicções e interpretações diferentes da realidade – como se fosse mais importante manter uma posição do que procurar a melhor solução.
Mais do que tentar traçar linhas vermelhas sobre o que pode ou não ser revertido, ou procurar ser o melhor a antecipar o futuro, é muito mais importante concentrar as atenções na realidade e atuar com base nessa avaliação. Mais do que estar a anunciar que o fim da pandemia está ali ao virar da esquina, importa reforçar os princípios básicos do combate ao vírus: testar, rastrear e vacinar, vacinar, vacinar. Mais do que euforia, exige-se precaução e, acima de tudo, bom senso – além da necessária dose de humildade, o que estes tempos, de surpresas permanentes, já nos deviam ter ensinado.
Num ensaio célebre, publicado na revista do New York Times, em setembro de 2009, Paul Krugman perguntava como os economistas não tinham visto chegar a crise financeira que, então, engoliu o mundo ocidental. Entre as várias razões que enumerou nesse artigo, o Nobel da Economia salientou “a visão higienizada e romantizada” que a maioria dos economistas tinha sobre a economia, o que os levava a ignorar todas as coisas que podiam correr mal. Por isso, a causa central desse fracasso – não terem conseguido antecipar o desastre que se aproximava – radicou no desejo de apresentarem uma abordagem “abrangente e intelectualmente elegante” que dava aos economistas “a oportunidade de exibirem a sua destreza matemática”. Faltou-lhes, no entanto, como sublinhou Krugman, abrir os olhos para a irracionalidade humana e para as imperfeições dos mercados.
Também agora, com a pandemia, temos assistido a muitos exemplos de “destreza matemática” e de fé inabalável em projeções que se nos apresentam infalíveis. Mas a verdade, como temos visto, é sempre bem mais complexa e, por demasiadas vezes, essas previsões não levam em linha de conta a tal “irracionalidade humana” de que Krugman falava nem o comportamento imperfeito do próprio vírus e das suas mutações.
Mais do que procurar ter razão antes do tempo, é preferível precaver o que pode correr mal – sem a ilusão de que as curvas são constantes ou imutáveis. Convém, por isso, dar atenção a alguns sinais que nos chegam de fora e perceber como alguns “regressos à normalidade” nem sempre são o que parecem. Foi noticiado que, em Nova Iorque, já com mais de metade da população totalmente vacinada, os espetáculos voltaram a realizar-se com a capacidade máxima de espectadores. Pois é, mas os EUA continuam a manter as suas fronteiras terrestres fechadas e a limitar a chegada de quem não viaja por razões essenciais. E se a próxima assembleia geral das Nações Unidas, em setembro, voltará a ser presencial, a realidade é que deverá ter uma forte limitação no número de delegados por cada país. A realidade exige sempre muito mais cautelas do que as previsões. E as soluções só resultam se forem feitas com bom senso. Algo que, como sabemos, não abunda nas discussões sobre futebol… e também sobre a pandemia.