Este editorial é sobre o assédio sexual em Portugal. Não vem tarde – é exatamente agora que o assunto esmorece da ordem do dia, depois de várias figuras públicas assumirem já ter sido vítimas, que importa falar sobre ele. Porque o tema não pode ser um fait-divers, um trending topic passageiro das redes e dos sites noticiosos que se esvai com a espuma dos dias.
Portugal chegou com, pelo menos, três anos de atraso ao #MeToo e ao movimento de denúncia de casos de assédio sexual nas organizações. E chegou tarde porque Portugal é pequeno, porque escasseiam oportunidades e porque existem compadrios e cumplicidades no topo, onde ainda abunda demasiada testosterona, que asseguram a clássica vista grossa e ainda a descredibilização das mulheres que se assumem como vítimas. Não tenhamos dúvidas: nesta sociedade patriarcal que ainda é a nossa, a cultura marialva, sobretudo em certos meios, foi sempre socialmente aceite. Era assim, fazia parte, e elas geriam os abusos mais ou menos explícitos e agressivos como conseguiam – umas melhor do que outras.
O assédio sexual não é só cometido por homens, nem afeta apenas mulheres, mas este é o padrão esmagador. E ainda reina, na cabeça de todos os géneros, uma enorme confusão sobre o que é o assédio, e a sua distinção da mera sedução desajeitada. Ele pressupõe comportamentos indesejados de cariz sexual, verbal ou não verbal, ações humilhantes, ofensivas e não retribuídas. E pressupõe também um contexto de relações desiguais de poder – não tem de ser apenas um chefe em relação a um funcionário, mas pode ser um produtor, um professor, um médico, uma fonte de um jornalista. O que o distingue da sedução é percetível para qualquer pessoa com um mínimo de empatia: a inexistência de consentimento ou de retribuição às investidas.
Não é crível pensar que o assédio sexual é reconhecido como um problema grave em grande parte do mundo desenvolvido, mas que, estranhamente, Portugal esteja imune a esta situação. Como se percebe na discussão acerca do racismo, somos excelentes a enfiar a cabeça na areia e a dizer que aqui não – aqui só temos cidadãos exemplares neste cantinho à beira-mar plantado.
Acontece que não. Acontece que grande parte das mulheres com experiência no mercado de trabalho passou por algo idêntico e tem uma qualquer história para contar, assim estejam dispostas a ser descredibilizadas, vilipendiadas, acusadas de oportunismo e outros mimos que tais.
À pergunta sobre porque é que as mulheres não falaram antes, a resposta é óbvia: porque denunciar é algo que custará processos, chatices e ofensas. Porque as mulheres sabem que a primeira reação da sociedade – tanto de homens como de mulheres – ainda será culpá-las a elas, atribuindo-lhes a responsabilidade pelos avanços. O silêncio, perante isto, foi sempre demasiado tentador, a saída mais fácil e, muitas vezes, a única possível.
Para avançarmos, faltam políticas internas claras dentro das organizações que repudiem o assédio e estabeleçam os mecanismos eficientes para as denúncias, faltam sistemas de apoio para as vítimas e falta uma lei mais explícita, que não misture várias coisas distintas no mesmo saco. Não defendo que o assédio seja um crime público que dispense a queixa da vítima, mas acho fundamental alargar os prazos para a queixa (que são de apenas seis meses) quando existem relações de dependência laboral.
O mérito deste movimento, que é doloroso – como são todos os processos em que, coletivamente, temos de reconhecer erros e culpas no cartório –, é criar um conforto para que as vítimas denunciem os abusos. É importante discutir o tema e não o largar, porque as mentalidades e os comportamentos mudam-se com educação e com a censura social dos atos, mais do que com leis. E não, não precisamos de nomes, nem de voyeurismo ou detalhes íntimos: precisamos apenas de ganhar consciência de que o assédio sexual existe, é um problema bem real e, sobretudo, deixar claro que ele não será mais tolerado.
(Editorial publicado na VISÃO 1471 de 13 de maio)