Já sabíamos que o bater das asas de uma borboleta na China pode provocar um furacão na América – a ilustração do princípio de que, por encadeamentos sucessivos e imprevisíveis, pequenas alterações têm a capacidade de desencadear fenómenos maiores. Estamos agora a confirmar essa tese, quando um incêndio numa fábrica de microchips no Japão tem consequências a mais de 11 mil quilómetros de distância, com o encerramento da Autoeuropa, em Palmela, durante cinco dias. É este o mundo em que vivemos: tudo está interligado e basta um pequeno sobressalto para provocar uma sucessão de acontecimentos que acabarão por ter impacto no outro lado do planeta.
Se esta relação e associação de factos parecem evidentes, a verdade é que recusamos aplicar o mesmo princípio quando se trata de combater a pandemia. Um pouco por todo o lado, a tendência continua a ser a de cada país tentar resolver o problema por si, dentro das suas fronteiras, insistindo em não querer perceber que vivemos num mundo cada vez mais interligado.
É o que se tem visto nesta “guerra das vacinas”: apesar de estarmos no meio de uma batalha, as doses continuam a ser armazenadas e guardadas nos países que as fabricam, os contratos de distribuição são negociados de forma opaca e sujeitos às leis do mercado, em relações bilaterais, como se vivêssemos tempos de paz e de prosperidade. Naturalmente, os efeitos desses procedimentos acabam por se refletir noutros espaços geográficos e, com isso, atrasar a erradicação do vírus.
A Ciência conseguiu encontrar, em menos de um ano e graças a uma colaboração exemplar ao nível mundial, a solução para a pandemia. Mas uma pergunta continua sem resposta: se todos sabemos que as vacinas são a solução, porque não se produzem mais doses.
O problema já deixou, portanto, de ser científico e passou a ser de produção e de logística. O que significa que passou a ser também um problema relacionado com o direito de propriedade das vacinas, de contratos comerciais, de domínio de quotas de mercado, mas também de equilíbrios geopolíticos, num jogo mais global de alianças e de influências. Um jogo em que a urgência sanitária foi deixada para trás, face à necessidade de assegurar o poderio económico e político para o futuro.
Este jogo começou a ser preparado logo no início da pandemia. Com alguns a olhar com ambição estratégica e outros a deixarem-se enredar em ilusões inocentes, crentes nas regras do mercado livre e na boa-fé dos seus parceiros. Só isso explica, por exemplo, que o Reino Unido, quando decidiu apoiar a investigação da Universidade de Oxford para o desenvolvimento de uma vacina, tenha imposto logo a condição de que as primeiras doses teriam de ser para os britânicos – algo de que a União Europeia se “esqueceu” quando financiou a alemã BioNTech com o mesmo propósito. Mais tarde, enquanto a Europa deixou a mesma BioNTech associar-se, sem quaisquer condições, com a americana Pfizer na produção das vacinas, os britânicos impediram, à ultima hora, um acordo semelhante entre Oxford e a americana Merck, forçando antes uma aliança com a anglo-sueca AstraZeneca, porque temia perder o controlo sobre a exportação de vacinas. E com razão: até ao momento, todas as doses produzidas, por exemplo, pela Pfizer nos EUA são exclusivamente para consumo interno – enquanto as que saem das suas fábricas na Europa são exportadas para o resto do mundo.
Ou seja, o mercado pode ter o apelido de “livre”, mas continua a prender uns a regras penalizadoras e a libertar outros para tratarem dos seus interesses. Por este caminho, mesmo que os países mais desenvolvidos possam conseguir vacinar a maioria da sua população, dificilmente o resto do mundo se libertará da pandemia – basta uma nova variante surgir numa latitude distante para, como o bater de asas de uma borboleta, provocar uma nova tempestade global.
É por isso que as vacinas e o seu processo de fabrico deviam ser consideradas um bem público universal. Sem monopólios nem proteções exageradas, até porque todas elas, de uma forma ou de outra, foram financiadas por milhões de euros de fundos públicos. Para enfrentar a pandemia, as vacinas não podem ter “donos”. Devem ser de todos e para todos, como Jonas Salk respondeu, em 1955, quando lhe perguntaram a quem pertencia a vacina da poliomielite, que tinha acabado de inventar: “Ao povo. Não tem patente, pois isso seria como patentear o Sol.” O seu a seu dono.