Lembrei-me, um dia destes, de uma passagem do Yes, Minister. O gabinete de crise britânico estava reunido para traçar um plano de ataque para um problema complexo. Eis o que ficou decidido: “No nível 1, dizemos que nada vai acontecer. No nível 2, dizemos que provavelmente alguma coisa acontecerá, mas não devemos fazer nada sobre o assunto. No nível 3, dizemos que se calhar devíamos fazer algo, mas não há nada que possamos fazer. No nível 4, dizemos que provavelmente havia algo que podia ser feito, mas que é tarde demais.” É o chamado plano para inglês ver.
Por cá, habemus finalmente um plano de desconfinamento para português ver. Ou algo que se assemelha a um plano, uma vez que tem um calendário, um gráfico quadriculado e números de referência. E, por isso, para efeitos de forma e comunicação, pode ser apresentado como tal. O problema são os detalhes ou a substância. Quando se traça um plano com uma excessiva preocupação na simplificação da mensagem e se dá primazia a critérios políticos em vez de científicos, estão reunidos os ingredientes para que algo corra mal.
Algo que aconteceu logo na noite em que o plano foi apresentado, na semana passada. Vários cientistas e especialistas, incluindo alguns a quem o Governo pediu o estudo, ficaram pasmados: como é possível que o PM esteja a apresentar linhas vermelhas muito mais exigentes do que aquelas que tinham sido recomendadas? “Será que houve um engano?”, questionavam-se em surdina. A resposta do Governo à pergunta colocada pela VISÃO veio em off: não foram seguidos os valores recomendados, foi uma “decisão política”.
A verdade é que as linhas vermelhas apresentadas pelo Governo são muito mais baixas do que as recomendadas pelos especialistas: uma incidência de 120 casos por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias e uma taxa de transmissibilidade (ou Rt) de 1. Já no documento apresentado pelos cientistas, a linha vermelha está nos 240 casos e o Rt em 1,2. O quadro-síntese em causa foi elaborado não pelos cientistas, bem entendido, mas, segundo admitem fontes governamentais, por elementos do Executivo para “simplificar” a mensagem.
Um plano “mais papista do que o Papa” por opção política pode ter consequências perigosas: ou não é para ser levado a sério, o que é grave, ou se for, pode colocar em causa o ansiado desconfinamento. Segundo Óscar Felgueiras, o matemático ouvido pelo Governo, é impossível manter o índice de transmissibilidade sempre abaixo de 1. É pura matemática: nalgumas situações teremos poucos casos e basta uma pequena variação para existir um Rt acima de 1. Se a incidência se mantiver baixa, não há problema. Se for um pouco mais alta, o que facilmente acontecerá com uma maior mobilidade da população, entramos imediatamente na zona vermelha.
A questão é que Portugal só esteve no “verde”, que permite desconfinar, durante um quarto da pandemia. Pelos cálculos do Público, dos 388 dias desde 21 de fevereiro de 2020, Portugal passou mais de metade do tempo na zona amarela (219 dias) em que é preciso estagnar ou mesmo recuar nas medidas, e só 98 dias na zona de conforto fixada para se progredir no calendário e continuar a abrir a economia. Nenhum país da União Europeia cumpre neste momento as metas definidas pelo Governo além de Portugal, diz o Jornal de Negócios.
Além dos valores distintos das linhas vermelhas, outras recomendações dos cientistas não foram incluídas: 1. O plano não foi definido com metas de critérios epidemiológicos e sem prazos; 2. A taxa de positividade dos testes, que permite detetar precocemente o aumento da presença viral na comunidade, não foi considerada.; 3. Os valores a ter em conta no mapa de risco são nacionais e não regionais. Segundo afirmou Tiago Antunes, secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro, a análise regional só será feita numa segunda fase, se sairmos da zona verde.
Talvez por isso, ou não, o plano que foi efetivamente publicado em Diário da República no sábado seguinte seja, em pequenas nuances, ligeiramente diferente daquele que António Costa apresentou. Continuam a constar as linhas vermelhas nos valores anunciados, mas introduz graduações de cor – o limite máximo de vermelho só é alcançado com a incidência acima de 200 casos por 100 mil habitantes e o Rt acima de 1,4. E acrescenta mais uma alínea com os valores efetivamente recomendados pelos especialistas para a incidência: “240 por 100 000.” Mas, mais do que isso, não define com rigor o que é que acontece especificamente em cada fase da evolução epidemiológica. Fica tudo em aberto, portanto, para uma futura avaliação, também ela política. Era bom, digo eu, que os cientistas fossem mais ouvidos. E, já agora, faça-se o mesmo na avaliação de segurança da vacina da AstraZeneca.
(Editorial publicado na VISÃO 1463 de 18 de março)