Marcelo Rebelo de Sousa fez bem em sublinhar, no seu discurso de vitória, que sabia não ter recebido um cheque em branco do povo português, apesar da reeleição com mais votos do que há cinco anos. Isso significa que tem consciência da enormidade do desafio que o espera: tentar manter uma presidência de consensos e de afetos, num clima político que ameaça fragmentar-se e crispar-se de uma forma como há muito não se via, mas em que a urgência do combate à pandemia tem de estar em primeiro lugar.
Ao recolher uma votação significativa, exatamente no momento em que a situação sanitária atinge níveis muito próximos do pesadelo, ele sabe também que esse apoio pode esfumar-se depressa e de forma irremediável. Quanto mais piorarem os números da pandemia, mais os portugueses reclamarão de Marcelo sinais claros de exigência em relação às medidas do Governo, mas, em contrapartida, confiam nele para, em simultâneo, não deixar o País desagregar-se e enredar-se em discussões que ameaçam tornar-se cada vez mais sonoras e violentas. Temos visto isso acontecer em muitos países: o combate à pandemia a transformar-se num motivo de divisão entre a esquerda e a direita, mas também entre os defensores do serviço público e os apoiantes da iniciativa privada. Não é que essa discussão seja nova ou até desnecessária, antes pelo contrário. De facto, em momentos de crise e de quase catástrofe sanitária, essa é uma discussão em que os dois lados tendem rapidamente a deixar-se engolir pelos argumentos, descurando a frente principal: salvar vidas e tentar proteger a economia na medida do possível.
O combate à pandemia exige unidade nacional, como se vê nos escassos bons exemplos que existem por esse mundo fora. Os portugueses não entregaram um cheque em branco; Marcelo ficou fiel depositário de uma prova de confiança para que tente manter, com negociação e afetos, o País unido perante uma emergência que não se sabe por quanto tempo mais irá durar.
Os primeiros cinco anos de Marcelo Rebelo de Sousa receberam a aprovação da esmagadora maioria da população. No entanto, o Presidente está agora como se fosse o treinador a iniciar uma nova época, depois da conquista de todas as taças e campeonatos no ano anterior: não é o passado que vai permitir-lhe continuar a ganhar. E perante a enormidade da tarefa que o espera, será por este segundo mandato que, no final, Marcelo irá ser recordado na História.
Como um dos pais da Constituição, Marcelo tem também uma nova tarefa pela frente e que ele próprio enunciou, na noite das eleições, na solidão do seu discurso: ajudar a criar um País mais livre, desenvolvido, justo e solidário, que “faça esquecer as xenofobias, as exclusões e os medos instalados”, e assim poder celebrar, em 2024, os 50 anos do 25 de Abril com o sentimento de dever cumprido.É na estrita defesa da democracia constitucional e da justiça social que Marcelo acredita que tem de ser enfrentado o outro fenómeno revelado nestas eleições: a existência de quase 500 mil portugueses que votaram num candidato antidemocrático, que defende o fim do regime constitucional e explora a divisão em vez do pluralismo, a perseguição em vez da inclusão. No seu frente a frente televisivo com André Ventura, foram já essas as armas que Marcelo usou, vincando os princípios que defende e recusando-se a entrar na guerra da lama.
Agora, tem de fazer o mesmo com os eleitores que, no momento do voto, preferiram manifestar a sua raiva e a sua deceção para com o País onde vivem: encetar um diálogo que é cada vez mais urgente e necessário. É fácil encontrá-los. Basta olhar para o mapa e perceber algumas das razões que os assistem: vivem quase todos no Interior esquecido de Portugal ou nas periferias também esquecidas dos centros urbanos. Não chega olhar para as percentagens, é preciso mesmo ir ver os números um a um. Perceber, por exemplo, que, nas 20 cidades mais populosas de Portugal, André Ventura só ficou em três à frente de Ana Gomes, mas, em contrapartida, inverteu essa posição nas cidades de média dimensão. Por mais sociologicamente interessante que seja analisar a percentagem de votos da extrema-direita no Alentejo, a verdade é que metade dos votos em Ventura foi depositada nos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal. O Presidente que quer unir tem também aqui um dos seus principais desafios do seu segundo mandato – em nome e em defesa da democracia.