Quando as circunstâncias são adversas e até os ventos mudam aleatoriamente de direção, por vezes não existe outra alternativa que não seja a de procurar abrigo e esperar que a tempestade passe. É preferível essa solução a mudar de rota, a meio do percurso, apenas para aproveitar o vento de feição, abandonando os objetivos com que se tinha iniciado a viagem.
Ao longo dos últimos quatro anos como secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres pareceu, muitas vezes, ter-se remetido a um seguro porto de abrigo, tornando-se quase invisível aos olhos dos principais líderes mundiais. É, por isso, fácil de o acusar de não ter respondido às (altas) expectativas que rodearam a sua eleição para um dos postos cimeiros da diplomacia mundial. Nas suas primeiras intervenções, Guterres prometeu lutar por reformas profundas na organização saída dos escombros da Segunda Guerra Mundial, comprometeu-se a seguir os passos do seu antecessor na concretização do Acordo de Paris para as alterações climáticas e elegeu, como uma das suas preocupações principais, o combate à desigualdade – que considerava, repetidamente, ser necessário para o desenvolvimento económico tanto dos países ricos como dos países pobres.
A verdade é que o mundo que temos hoje é, na realidade, incomparavelmente pior do que aquele que existia quando António Guterres iniciou o seu mandato. Não só a presidência de Donald Trump veio abanar, de forma inusitada, a ordem mundial estabelecida, como os principais países não souberam responder ao que se passava em Washington. Assim, o papel das Nações Unidas, como mediadora de conflitos e de espaço de consenso entre nações, foi deixado ao abandono.
Numa análise fria e realista, podemos considerar que António Guterres falhou em quase tudo o que prometeu. Podemos acusar Guterres de tudo e mais alguma coisa na ONU, mas o mais importante é que, durante estes anos, ele tem estado sempre do lado certo da História. Consiga ou não fazer valer as suas posições e pontos de vista no concerto das nações, Guterres tem dito o que precisa de ser afirmado, sublinhado e repetido até à exaustão – mesmo quando não é ouvido.
Ao longo destes quatro anos, tantas vezes perante a indiferença de muitos, Guterres foi o líder que, nos grandes palcos internacionais, mais vezes se indignou com a crescente desigualdade social e económica, que está a matar democracias, a fomentar revoltas e a abalar a coesão interna de tantas nações.
No capítulo das alterações climáticas, Guterres tem tentado alertar o mundo de que o problema não se resolve com acordos assinados, mas que tardam em cumprir.
E, apesar de Donald Trump e de outros negacionistas nas cadeiras do poder, conseguiu fazer desse combate a emergência principal das Nações Unidas para as próximas décadas. E nunca permitiu que o tema escapasse da agenda das grandes cimeiras mundiais.
Finalmente, face à pandemia e num tempo de “salve-se quem puder”, Guterres tem sido uma das vozes mais ativas a insurgir-se contra a corrida à vacina por parte dos países ricos, sem se preocuparem em contribuir para uma distribuição mais equitativa das doses disponíveis em todo o planeta – a única forma séria e eficaz de resolver o problema.
Podemos admitir que, ao longo destes quatro anos de mandato (que terminará dentro de um ano), António Guterres passou a maior parte do tempo a pregar no deserto. A verdade, no entanto, é que foi o próprio mundo que, por inércia e medo de tantos líderes, se transformou num deserto, como um barco ancorado num porto escondido à espera que passasse a tempestade Trump.
Agora que, com a dupla Joe Biden / Kamala Harris, se anuncia um regresso dos EUA ao multilateralismo, ainda bem que, apesar de tudo, as Nações Unidas tiveram alguém que, pela sua postura, as manteve do lado certo da História.