Uma gigantesca operação logística. É assim que está a ser encarado o desafio de administração das vacinas da Covid-19 em toda a Europa, as benditas doses que desconfinarão o mundo. Por cá, pelo que foi apresentado até agora, das duas, uma: ou não estamos a alcançar a dimensão do desafio ou não estamos ainda preparados para lhe fazer face e há (muita) margem para correr mal. Basta ler o detalhe do plano de vacinação para a Covid-19, preparado pela task force dirigida por Francisco Ramos, que foi apresentado no dia 3 de dezembro. São 21 páginas, mas das quais a esmagadora maioria é contexto genérico e enquadramento.
Já o busílis da questão, ou seja, como vamos transportar, guardar e administrar vacinas altamente voláteis que têm de ser conservadas a temperaturas de -70ºC, reduz-se a três singelos parágrafos: 750 caracteres e dois desenhos.
“A logística inerente ao plano de vacinação apresenta alguns pontos críticos: disponibilidade, distribuição e administração”, pode ler-se no documento. E sendo estes, portanto, pontos críticos, como é que se responde a eles? Assim: “A receção das vacinas em Portugal será assegurada em centros de distribuição, a partir dos quais as vacinas serão distribuídas para os centros de vacinação. De forma a assegurar o armazenamento, a distribuição, a administração e a aquisição de novas vacinas, será necessário um sistema de informação e gestão, em tempo real, para acompanhar a execução da componente operacional do plano logístico.” Esta monitorização será garantida pela constituição de um Centro de Comando, Controlo e Coordenação no Ministério da Saúde. E mais não se diz (o plano de comunicação, por exemplo, é quatro vezes mais detalhado). Ficaram esclarecidos e descansados? Eu também não.
A verdade é que parece não existir ainda um plano consistente e que assegure um processo rápido e seguro de vacinação. O Governo optou, na mesma lógica do que tem sido feito no resto da Europa, por deixar a vacinação apenas a cargo do Estado – todo o processo será assegurado, “pelo menos nas primeiras duas fases”, pelo SNS em 1 200 centros de saúde, excluindo as farmácias e os grupos de saúde privados. Nada contra, se tudo for garantido e agilizado. Só que isso implica criar uma estrutura e uma logística complexas. Onde vão ser instalados os supercongeladores? Como será feito o transporte pelo País até aos centros de saúde? Onde, dentro das unidades de saúde, muitas vezes em espaços com falta de condições, ficarão armazenadas as vacinas e será feita a sua administração sem acumulação de pessoas? Que reforço de pessoal terão os centros de forma a assegurar que este trabalho é feito?
Na Alemanha, serão montados enormes centros de vacinação específicos para este efeito, em centros de congresso, estádios, ringues de patinagem e outras grandes estruturas, recorrendo à ajuda de organizações não governamentais, da proteção civil e ainda das Forças Armadas. No Reino Unido, onde a vacinação começou já esta semana, a mesma coisa. França, Itália e Espanha optaram por usar também a estrutura que já existia para a vacina da gripe para assim agilizar todo o processo. Outros países optaram por reforçar o sistema com unidades móveis. A maioria está a mobilizar e a treinar pessoal para dar as vacinas, incluindo médicos reformados. Por cá, pelo que foi apresentado, estamos a contar apenas com a estrutura existente, que será “reforçada” mas não se sabe ainda como, e que está já a rebentar pelas costuras… Ainda para mais, terá de ser esta mesma estrutura, que mal dá conta do recado nos dias normais, a contactar os utentes diretamente para marcar data e hora de vacinação.
O resultado é o que temos à vista: podemos chegar a 2022 e ainda não ter toda a população vacinada. A primeira fase (profissionais de saúde e doentes de risco com mais de 50 anos), que abrange apenas 950 mil pessoas, pode durar até abril. O segundo grupo, com outras comorbilidades e pessoas com mais de 65 anos, abrange 2,7 milhões, que serão vacinados até julho. O grosso da população, só a partir do verão, processo que poderá prolongar-se até ao final do ano, e isto “caso sejam cumpridos os calendários de chegada das vacinas”.
Agora que a luz ao fundo do túnel está cada vez mais nítida, é fundamental gerir as legítimas expectativas dos portugueses. A forma como decorrerá a vacinação será determinante para a velocidade da retoma económica e para a avaliação da capacidade de resposta deste Governo perante a pandemia. Com a crise a agudizar-se e as pessoas saturadas de medidas de confinamento, muitas sem emprego e a passarem sérias dificuldades, a ansiedade será difícil de conter. Os níveis de tolerância começam a entrar em território negativo.
Pensar que as medidas de restrição continuarão até ao final de 2021 será cada vez mais difícil de aceitar. Por isso, a administração das vacinas tem de ser ultrarrápida e ultraeficiente – uma operação que tem de ser uma das prioridades máximas do Executivo e envolver todos os recursos necessários. Diria mesmo que não deve olhar a meios nem a custos: cada dia ganho na retoma compensará rapidamente os esforços envolvidos nesta operação. Não o fazer tem um custo que não podemos suportar: 2021 ser mais um ano perdido.