Há uma ideia que devia vir obrigatoriamente acoplada à palavra liberdade: a de responsabilidade. Como um yin e um yang, uma e outra deviam ser inseparáveis. Os seres humanos têm a oportunidade e o livre-arbítrio, mas onera-os o fardo de escolher e arcar com as consequências e os resultados das suas escolhas e desejos. É este o princípio fundamental da vida numa sociedade democrática, mas também uma regra essencial na educação de uma criança.
A prática do PCP, que tão bem conhece a luta pela liberdade, mostra não raras vezes dificuldade de encaixe dos conceitos de responsabilidade e de consequência. Foi assim ao longo dos tempos, e mostrou continuar assim hoje, em plena pandemia. Da mesma forma que resiste a admitir a total falência do ideal soviético e em reconhecer os erros e crimes cometidos por países que tentaram pôr em prática a doutrina marxista-leninista, o PCP alapa-se, conservadoramente, a dogmas e práticas, sem se adequar, com agilidade, às necessidades dos tempos.
A teimosia na organização da Festa do Avante! nos moldes tradicionais é exatamente isso: mais uma prova desta incapacidade de adaptação. Mas é, sobretudo, um erro político crasso. Um tiro nos pés que vai gerar antipatias, fazer escalar populismos e desviar mais algum eleitorado de um partido que não para de encolher.
Impõe-se enquadrar. O PCP tem, como qualquer outro partido ou organização, o direito de organizar convenções, encontros, comícios, manifestações e o que entender necessário à sua prática política. Desde 1976 que realiza a Festa do Avante!, um evento que é muito mais do que uma convenção ou comício político onde se vê a força do PC: é um festival de artes e cultura, ao qual assistem muitos que nunca nas suas vidas votaram nele. Ninguém questiona que uma espécie de Festa do Avante! se pudesse realizar, simbolicamente e com bom senso, adaptada às circunstâncias em que se pedem tantos esforços a todos os portugueses, e que centenas de eventos foram cancelados, com tantos danos para todos, em prol da saúde pública. Como ninguém questiona que a vida tem de continuar e que é preciso recomeçar, aos poucos, a normalizar as atividades – vimos todos com bons olhos o regresso dos concertos, dos restaurantes, dos teatros e das conferências. Questiona-se, sim, muito legitimamente, os moldes escolhidos para o fazer. Mesmo tendo em conta a largueza do espaço e as medidas que estariam previstas, a ideia de juntar 33 mil pessoas por dia, de gerações muito diferentes, durante três dias, num festival deste tipo é tudo menos sensata – é um exercício de liberdade sem responsabilidade.
Já a resposta do partido às críticas e às regras impostas no parecer da DGS (que reduz a lotação para cerca de 16 mil pessoas) foi mais do mesmo: uma incompreensível “perseguição” reacionária. Inúmeras vezes Jerónimo de Sousa exigiu, e bem, que o Estado desse o exemplo. Vale agora o mesmo princípio: os políticos têm de dar o exemplo. E o pior que lhes pode acontecer, porque é descrédito que se paga caro até nas urnas em tempos de populismo, é ficarem conotados com a ideia de que exigem aos portugueses esforços maiores do que os que estão dispostos a fazer.
É irresistível revisitar a mais brilhante sátira ao comunismo soviético, A Quinta dos Animais, em que George Orwell descreve uma reorganização social feita tendo por base o princípio fundamental: “Todos os animais são iguais”. Ao fim de uns tempos, o que começou com ideias bem-intencionadas transformou-se em totalitarismo, e os sete mandamentos iniciais foram desvirtuados numa máxima lapidar: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros.”
E assim se vai avante, aos tropeções, cantando e rindo.