Seria prudente deixar de se falar no “pico” da epidemia como se fosse uma espécie de via rápida para o regresso à normalidade. Ultrapassar o pico, como sabem os alpinistas, representa apenas metade do trabalho que precisa de ser feito – a maior parte das mortes no Everest ocorrem na descida e não na subida, convém recordá-lo. Embora seja um momento importante – em especial em Portugal, onde o sistema de saúde tem conseguido resistir ao colapso a que se assiste em Itália, Espanha ou nos EUA – , não pode ainda ser encarado como a vitória final. É apenas uma espécie de invasão da Normandia – ainda demora quase um ano até às forças nazis capitularem em Berlim.
O foco não pode estar, assim, no “pico”, mas no “planalto”. A atenção tem de estar concentrada nos longos meses que se vão seguir, com a curva de novos contagiados a diminuir, espera-se, de forma lenta e consistente, mas, ao mesmo tempo, com todos os esforços focados em impedir o surgimento de novos picos, que possam pôr em causa tudo o que já foi feito. Serão tempos em que todos – não é figura de retórica, teremos mesmo de ser todos! – precisamos de nos manter alerta e de perceber que, em qualquer guerra, há sempre avanços e recuos. A qualquer momento, por erros nossos ou por algo que ainda desconhecemos sobre o comportamento do vírus, podemos entrar numa montanha-russa: as nossas vidas sobressaltadas por períodos de confinamento e por outros de alguma “normalidade”, até que um tratamento eficaz ou uma vacina feita em tempo recorde consigam restabelecer a ordem natural em que vivíamos, sem interrupções.
Para enfrentar os tempos que se avizinham não se podem repetir os erros e as más avaliações do passado, nem a forma como tantos países e organizações internacionais negligenciaram, mesmo neste mundo globalizado, o risco epidémico de um coronavírus identificado na longínqua cidade de Wuhan. Nestes tempos, é preciso, mais do que nunca, manter a dúvida científica sobre tudo e todos. Convém não descansar em cima de relatórios ou de supostas análises, por mais sérias que possam parecer. Já vimos o resultado que isso deu no passado recente. Basta apontar apenas dois exemplos de “certezas” que, há ainda tão pouco tempo, tantos davam como inquestionáveis, mas que acabaram por influenciar muitas más decisões e escolhas: as previsões da OCDE, publicadas a 2 de março (!) estimavam um abrandamento da economia mundial de apenas 0,5%, com base num cenário de uma “epidemia largamente concentrada na China”; o relatório da Global Health Security Index, publicado no final de 2019 e elaborado, entre outras organizações, pela Universidade Johns Hopkins, indicava que os EUA eram o país do mundo mais bem preparado para responder a uma pandemia. A realidade foi arrasadora com qualquer uma dessas conclusões.
Para enfrentar os tempos que se avizinham, de combate simultâneo a uma pandemia sanitária e a uma profunda recessão económica, é preciso, acima de tudo, que os decisores políticos adotem, sem qualquer receio, um discurso transparente e de verdade. Não vale a pena continuar a insistir nos palpites ou nos desejos. Nestes tempos, em que a confiança das populações tem um papel decisivo, é preferível dizer a verdade: ninguém sabe quando é que isto vai acabar. Como também é preciso dizer que o confinamento em que vivemos só pode terminar quando tivermos todos os meios disponíveis para podermos controlar os focos de contágio, assim que voltarmos para as ruas e os turistas regressarem: capacidade de testar depressa e em massa; máscaras e outros equipamentos de proteção disponíveis para toda a população; hospitais preparados para dar resposta, a qualquer momento, a um crescimento repentino de novos infetados; um sistema tecnológico que permita identificar, com rapidez, as pessoas que tenham estado em contacto com alguém doente. Só quando tivermos tudo isso é que a “urgência” do regresso à normalidade pode começar a ser satisfeita. Cabe ao Governo, com transparência e verdade, dizer quando é que esses meios poderão estar disponíveis. E prepararmo-nos, todos, para vivermos entre o planalto e a montanha-russa.