Comecemos por um autoexercício de sinceridade: alguém ficou genuína e completamente surpreendido com as recentes revelações sobre Isabel dos Santos divulgadas no âmbito da investigação jornalística Luanda Leaks? Alguém ficou de boca aberta e soltou um sonoro “Ohhh!” de espanto quando leu e ouviu que a filha de José Eduardo dos Santos aproveitou, durante anos, o poder e a influência do pai para canalizar dinheiro do Estado angolano para os seus negócios próprios? Alguém foi capaz de exclamar, perante as revelações extraídas de um conjunto de mais de 715 mil documentos, que nunca imaginou que a “princesa de Angola” teria conseguido tornar-se na mulher mais rica de África usando dinheiro que não lhe pertencia para expandir o seu império, nomeadamente com uma série de grandes e importantes negócios em Portugal?
Todos sabemos as respostas a estas perguntas: ninguém minimamente informado pode dizer, sem criar estupefação nos outros, que nunca tinha ouvido falar nessas suspeitas… nem que fosse ao de leve, de passagem ou numa conversa circunstancial. Ninguém. Mas, curiosamente, ainda há quem tente passar a imagem de que ficou surpreendido, como se viu pela forma como Davos “desconvidou” Isabel dos Santos à última hora; o EuroBic foi depressa montar uma espécie de cordão sanitário para evitar qualquer tipo de contágio com a sua acionista; e a consultora PWC apressou-se a cortar as suas ligações com a empresária. E isso, na verdade, diz muito sobre o estado do mundo, dos negócios e do valor da verdade, nos dias que correm.
Em termos simples e claros, a investigação desenvolvida no âmbito do Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, sediado em Nova Iorque, é um duro golpe para o futuro do império de Isabel dos Santos – a quantidade de ligações estranhas e sob suspeita é de tal dimensão que, a partir de agora, basta ouvir o nome da empresária angolana para muitos investidores e negociantes internacionais mudarem logo de assunto para evitarem ficar chamuscados nesta fogueira. Até porque esta investigação constitui um arraso para a credibilidade da narrativa que, de forma quase cândida e evitando o excesso da exposição mediática, Isabel dos Santos tentou criar, desde o início: a da discreta self-made woman que construiu uma carreira de sucesso graças ao seu “carácter, inteligência, educação, capacidade de trabalho e perseverança” – os predicados que continua a repetir, agora até à exaustão e já a desdobrar-se no máximo de entrevistas e esclarecimentos que consegue. Uma estratégia de defesa que, inevitavelmente, lembra a frase de Leon Tolstói sobre uma das personagens do imortal Guerra e Paz: “A condessa Bezukhov tinha a justa reputação de muito amável. Sabia dizer o que não pensava.”
Esta não foi a primeira vez que surgiram informações e alegações sobre como o apoio e a proteção paternal foram decisivos para a sua carreira, conforme era reconhecido, há longo tempo, num telegrama confidencial da embaixada dos EUA em Luanda, divulgado pelo Wikileaks. E, ao longo dos tempos, muitas foram as denúncias e acusações sem que nada acontecesse. Até que o poder mudou de mãos em Luanda e Isabel dos Santos ficou do lado “errado”, sem proteção e vulnerável aos ataques…
Embora Isabel dos Santos seja o foco dos Luanda Leaks, o verdadeiro alvo é muito mais vasto: a legião de firmas que sabem como aproveitar-se das falhas no sistema financeiro internacional para permitir aos poderosos, como ela, transacionar quantidades enormes de dinheiro, sem ninguém questionar a sua proveniência ou, sequer, a sua propriedade. Como se viu, ao longo de anos, o mais importante foi saber se Isabel dos Santos tinha dinheiro; ninguém queria saber de onde ele vinha – até porque todos sabiam, mesmo, de onde ele vinha. Algo que lembra também uma velha frase de Maquiavel: “Embora o ouro, só por si, não compre bons soldados, os bons soldados trazem-lhe sempre ouro.”