Ainda se lembram de quando, à noite, as famílias acabavam de jantar e se sentavam na sala a ver televisão em conjunto? Existiam dois canais com uma programação rígida, o patriarca optava por um deles, e ali se ficava toda a noite de olhos postos num ecrã. Hoje, esta imagem parece pré-histórica. Em minha casa, há verdadeiras disputas pelo ecrã principal, na sala. Os outros estão espalhados pelos computadores pessoais e smartphones. Cada um vê o que lhe apetece à hora que entende. Nos últimos dias, o meu coração tem balançado entre o documentário sobre teoria do design The Abstract e a nova temporada de The Crown (ainda a ressacar da substituição da Claire Foy), os dois da Netflix. O meu marido anda há meses a explorar o catálogo da HBO: Game of Thrones, Succession, Big Little Lies, Sharp Objects, True Detective, e mais que for. Os meus filhos, quando não estão no YouTube, dividem-se entre filmes de terror e séries de ficção, e coisas surpreendentemente “vintage”, como o Friends ou The Office. Não faltará muito para a mais nova também implorar por um serviço de streaming decente para fazer binge watching de desenhos animados. Já os canais nacionais generalistas ou de informação… se estiveram ligados duas horas num mês foi muito.
Há uma luta de titãs pelo nosso escasso tempo livre, aquele em que estamos disponíveis para nos entretermos ou cultivarmos. Este mês, a revolução em curso no vídeo foi agitada com a entrada de um novo player global, que se rendeu à evidência de que as pessoas deixaram definitivamente de consumir os seus filmes e séries da forma como nas últimas décadas o faziam, numa sala de cinema ou num canal de televisão “tradicional”. A chegada da Disney ao streaming, o modelo de negócio em que a Netflix foi pioneira, marca uma nova era no mundo dos média, um passo tão revolucionário como a abertura dos primeiros sites noticiosos gratuitos na internet, que geraram toda uma vaga de mudança na indústria do print. Hoje a Netflix, com 158 milhões de clientes no mundo, conta com dezenas de rivais (Amazon Prime Video, Hulu, Apple TV, e a caminho o AT&T WarnerMedia) além da Disney, que só no primeiro dia na América do Norte e na Holanda, com uma oferta vocacionada para as famílias por sete dólares, somou dez milhões de subscritores – uma avalanche tão grande que levou para lá do limite a capacidade dos seus servidores.
As coisas mudaram, pois, para sempre na paisagem do vídeo, tal como já tinham mudado na música, no gaming e no print. A proliferação de serviços e opções significa mais escolha e poder para os clientes. Para as empresas de média, uma competição sem precedentes pelo tempo dos consumidores, pelo talento e pelos orçamentos. Um modelo de negócio que assenta agora sobretudo nas assinaturas em vez de publicidade, e em que se está a injetar valores astronómicos para ganhar quotas de mercado: a Netflix, que diz que o seu maior concorrente é o Fortnite, está a gastar três mil milhões de dólares por ano em produção e investimento, e precisaria de aumentar os preços em 15% para chegar a um breakeven – um passo arriscado numa fase em que a concorrência dispara. Só na América, mais de 590 mil milhões de dólares foram injetados na indústria de entretenimento em aquisições e programação nos últimos cinco anos (cerca de três vezes
o PIB nacional).
Há cada vez mais gente a somar dois e três serviços de streaming mensais para ver coisas específicas e a deixar para trás o “velho” pacote de digital com centenas de canais do cabo tradicionais. Alguns vingarão, outros ficarão pelo caminho. E este cenário terá, no médio prazo, efeitos em toda a indústria, que se repercutirão, naturalmente, em Portugal. Num futuro não muito distante, os canais de TV tal como os conhecemos hoje serão coisa do passado, ou reduto de um nicho envelhecido da população. Mais um capítulo da história da tecnologia a revolucionar indústrias.