A partir desta semana, sou uma cidadã de segunda categoria. Passei para uma espécie de clandestinidade. Juntei-me aos muitos milhares de portugueses com o cartão de cidadão caducado, que não conseguem renová-lo num prazo decente. Não posso pois abrir uma conta num banco, celebrar uma escritura pública nem viajar dentro da Europa caso não tenha um passaporte válido.
É verdade que eu podia e devia ser uma cidadã mais exemplar, lembrar-me com vários meses de antecedência de que o meu cartão de cidadão iria caducar e tentar diligentemente antecipar-me à confusão instalada nas conservatórias nacionais. Porém, em vez de diligente fui crente. Acreditei, vá-se lá saber porquê, que um problema que se arrasta há meses seria resolvido pelo Governo. Um estrangulamento nas férias as pessoas entendem, um aperto circunstancial que se arrasta por algumas semanas também. Serviços bloqueados ou com atrasos de vários meses desde o início do ano? Não é admissível, alguma coisa terá de ser feita em tempo útil para resolver este caos. Só que não.
A minha saga será agora igual à de tantos outros portugueses que se acumulam aos magotes à porta dos serviços públicos. Tento fazer o agendamento online, a forma mais cómoda para “evitar filas de espera e perdas de tempo”. Para Oeiras, a minha zona de residência, a próxima vaga disponível é para 27 de novembro, daqui a seis meses. Não é propriamente opção… Procuro soluções aqui à volta: para Cascais só a 9 de novembro; em Lisboa, a única vaga disponível em todo o concelho é 9 de outubro. Na melhor das hipóteses, serão quatro meses de espera…
Se quiser meter-me à estrada e fazer uns bons quilómetros, solução que muita gente está, em desespero, a utilizar, posso sempre ir até Sobral de Monte Agraço e safo-me a 25 de julho ou visitar Alenquer e consigo vaga a 21 de agosto. Ah, mas se tirar uns dias de férias e for até Bragança, Chaves, Guarda, Portalegre ou mesmo às ilhas sou capaz de encontrar uma aberta em pouco tempo. Não era bem este o conceito de descentralização que tinha em mente…
É claro que se eu fosse uma arquivista encartada e precavida e tivesse guardado o pin da minha chave móvel digital – o código original de autenticação que me foi entregue quando recebi a carta de notificação para levantamento do meu documento –, poderia agora fazer o pedido de renovação online. Como não tenho – nem eu nem ninguém que eu conheça –, não posso. Resta-me esperar. E tentar não desesperar.
Dou uma espreitadela na esclarecedora reportagem fotográfica da VISÃO publicada online esta semana, com o título “O País das Filas”. Na Conservatória do Registo Civil de Oeiras, há quem tenha ido para a porta às 3h30 da manhã, há quem leve banquinhos, há quem se estenda pelo chão. Uma senhora que lá estava desde as 5h30 já não teve a sorte de apanhar senha, quando o serviço abriu às 9h e em cinco minutos se esgotaram as vagas para o dia.
Neste País das Filas, o mesmo cenário repete-se em vários serviços públicos: Segurança Social, Finanças, centros de saúde. Nem as “armas secretas” dos bebés de colo ou em carrinhos que dão vantagem no atendimento prioritário ajudam grande coisa: o caos português quando nasce é para todos, e é bom que os mais novos se apercebam disso de pequeninos. Telefones e linhas de informação que tocam horas ou mesmo dias a fio sem ninguém atender também são, claro, costumeiros.
Podemos encolher os ombros e resignar-nos. Podemos mesmo, como fez a secretária de Estado da Justiça, culpar os utentes – esses desgovernados – pelos atrasos no atendimento, que vão para as portas dos serviços ainda antes da hora de abertura. E podemos fingir que um País que sujeita os seus cidadãos a estes tempos de espera nestas condições não é um País falhado.
(Editorial publicado na VISÃO 1374 de 4 de julho)