Antigamente, os bobos da corte, também chamados de bufos, serviam para entreter o rei e a rainha e fazê-los rir. Eram esses bobos da corte os únicos que podiam dizer tudo e criticar os monarcas sem correr riscos. Entre um “babe” e outro, a expressão com que se dirigia mesmo a quem tinha acabado de conhecer, Joe Berardo disse, durante anos, tudo o que lhe apeteceu com a maior desfaçatez, e Portugal encolhia os ombros e ria. Todos os países precisam dos seus bobos da corte, são uma espécie de válvula de escape do sistema. Só que, por estes dias, já poucos têm vontade de rir. Joe Berardo foi, no Parlamento, uma espécie de pano encharcado na cara de um País anestesiado.
Foi preciso ver um bobo da corte despudorado e desbocado na Assembleia para Portugal acordar para o que se sabia há muito: isto era (e é) uma vergonha. Que não se limita a quem se aproveitou do sistema, pediu dinheiro irresponsavelmente, protegeu o seu património pessoal nos empréstimos e fintou por meios legais tudo e todos, escapando pelos intervalos dos pingos de chuva debaixo dos olhos de conselhos de administração pagos a peso de ouro, consultores de risco, reguladores, polícias do mercado. E no fim pagámos todos nós, claro está.
Mas, em vez de fazermos de conta que não sabíamos e de Joe Berardo o alvo de todas as iras e indignações, talvez fosse bom perceber que Berardo fez apenas o que o deixaram fazer. Mais grave: fez o que o incentivaram a fazer. Durante anos, Berardo foi um peão para jogadas de bastidores dos poderosos, algumas movidas por dirigentes socialistas. Ainda agora Berardo confirmou no Parlamento que foi a própria CGD, dirigida pela dupla socialista Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, que lhe propôs a operação de compra de ações do BCP, dispensando-o de um aval pessoal, de forma a que este se tornasse parte ativa num golpe para afastar Jardim Gonçalves. Tal como foi José Sócrates que deu ordens à Caixa Geral de Depósitos para votar contra na OPA da Sonae à Portugal Telecom, e financiou Berardo para este se opor à operação de aquisição por parte de Belmiro de Azevedo.
Berardo está nas bocas do povo só porque é visto como o bobo da corte. Já de Carlos Santos Ferreira, ex-presidente da CGD e, depois, do BCP e um dos principais responsáveis pelo descalabro financeiro do banco ao conceder centenas de milhões de créditos especulativos, de favor ou orientados politicamente, poucos se lembram. Quantos o reconhecem na rua? Mas é ele quem saiu mais chamuscado da detalhada auditoria da Ernst & Young às contas do banco público entre 2000 e 2015. Um relatório que Santos Ferreira critica, numa desfaçatez ao nível de Berardo, dizendo que é “factualmente infeliz, pouco cuidado e pouco profissional”. É bom de ver que ele é exemplo acabado de cuidado e profissionalismo, basta olhar para o desfecho dos créditos que o seu banco aprovou à margem de tudo o que deviam ser as boas práticas bancárias.
Mas é preciso perceber que grande parte da banca comeu do mesmo prato e tem, também, telhados de vidro e culpas no cartório. Basta ver que as administrações do Banco de Portugal, da Associação Portuguesa de Bancos e dos três maiores bancos a operarem em Portugal, como bem notava o Público há uns meses, são presididas ou integram executivos que estiveram na CGD e no BCP em equipas lideradas por Carlos Santos Ferreira.
Só mais um pequeno detalhe nesta dança de cadeiras sintomática. André Luiz Gomes, o advogado de Berardo que foi coprotagonista na comissão de inquérito, pertenceu também ao conselho de administração do Millennium BCP entre 2012 e 2017, e foi ainda vogal da Comissão de Governo Societário, Ética e Deontologia e da Comissão de Avaliação de Risco desse mesmo banco.
Isto está tudo ligado. Relax… tá-se bem, babe!
(Editorial publicado na VISÃO 1367 de 16 de maio)