As crises políticas têm uma vantagem, inegável e nem sempre devidamente valorizada: ajudam à clarificação. E permitem-nos perceber como os vários atores políticos se comportam numa situação de “aperto”, como respondem às investidas dos adversários e até onde estão dispostos a ir para manter o apoio dos seus correligionários. São, nesta era de imediatismo, uma espécie de jogo de xadrez relatado nas televisões como se ainda estivéssemos nos tempos da rádio, às vezes por via indireta, com vários jogadores a movimentarem as suas peças nem sempre às claras, mas a tentarem adivinhar o que vai na cabeça do seu oponente direto. Durante dias, somos espectadores de cada lance, de cada alteração de tática, e vamos percebendo quem está ali para o xeque-mate ou para tentar “empatar” o jogo. E vamos percebendo, claramente, quem são os políticos hábeis no jogo e os inábeis nesse mesmo jogo. E isso, sinceramente, é sempre uma boa e necessária clarificação – mesmo que nem sempre essa habilidade possa ser sinónimo de boa capacidade para governar (mas a avaliação, que a tire cada um por si, em face do que viu).
O que fica, então, deste exercício de clarificação? O que mais saltou à vista foi a confirmação de que, neste jogo político, António Costa se movimenta como peixe na água e Rui Rio se comporta como um peixe… no deserto. Mesmo nos momentos mais crispados, Costa mostrou sempre ter o controlo aparente da situação, qualquer que fosse o desfecho da crise, e transmitiu a sensação de que podia ganhar em qualquer cenário. Já Rio optou por desaparecer, fechar-se com os seus conselheiros, e ser depois o último a reagir, com uma declaração aos jornalistas sem direito a perguntas, em que tentou contra-atacar mas apenas mostrou a solidão do labirinto em que se enclausurou desde que decidiu assumir uma postura de maior oposição ao Governo, como lhe pediam os seus críticos – mas que não está, definitivamente, na sua natureza, como se nota.
Também se percebeu que o eleitoralismo é um vírus capaz de contagiar deputados de quem pouco ou nada se fala, mas que, de repente, a coberto da sombra de uma comissão parlamentar, são capazes de ganhar protagonismo e de engendrar acordos que pensam poder ser capitalizados em votos, neste caso, os dos professores.
Mas o que também fica é a confirmação de que a ameaça das pequenas crises políticas, como a que experimentámos no final da semana passada, pode ser resolvida, em dois toques, por políticos hábeis – sobretudo se contarem com a ajuda, mesmo involuntária, de adversários inábeis. São, no fundo, pequenos dramas da política que possuem o mérito de ajudar a clarificar posições, estratégias e até a personalidade dos seus atores, mas que não passam de sobressaltos normais do processo democrático, capazes de inflamar paixões e incendiar debates, e que rapidamente desaparecem na espuma dos dias.
Bem pior do que esta crise entre partidos, que lá se vai resolvendo com jogo político, é a outra que vai crescendo um pouco por todo o mundo, criando novos fenómenos de descontentamento, fomentando o autoritarismo e a intolerância. É uma crise com raízes nos desequilíbrios da globalização e nas feridas por sarar da crise económica e financeira de há uma década. É a crise provocada pela desigualdade crescente entre ricos e pobres (sejam estes indivíduos ou nações) e pela perda da esperança de que o sistema político consiga reparar as injustiças e apoiar, convenientemente, os mais fracos e desfavorecidos. É a crise que, como temos visto, está a ser aproveitada como rastilho pelos populistas em todo o mundo para destruir os valores da solidariedade e da democracia.
A crescente desigualdade que está na origem disto tudo é que é a verdadeira crise que deveria preocupar-nos. Essa, no entanto, não se resolve com a simples habilidade política.
(Editorial VISÃO 1366 de 9 de maiol)