Os resultados das recentes eleições na Catalunha são o sintoma mais visível de algo mais profundo que grassa pelo mundo, nomeadamente entre as chamadas democracias ocidentais: por mais diferente que seja a latitude, qualquer chamada do povo às urnas revela, com estrondo, sociedades muito divididas, e clivagens que, pelo menos à superfície, parecem inultrapassáveis. Olha-se para o mapa mundial e, de facto, é difícil encontrar aquilo que, no passado, se convencionou chamar “maiorias estáveis”, em que governos democraticamente eleitos gozam de um apoio confortável no parlamento, sem serem obrigados a árduas e prolongadas negociações para aprovar leis e orçamentos. A situação é de tal forma nova, que até a nossa há bem pouco tempo original e surpreendente “geringonça” já é vista por essa Europa fora como uma solução consolidada, madura e pronta a ser replicada.
A verdade é que enquanto, no passado, se convocavam eleições para clarificar a situação política e, dessa forma, tentar encontrar uma solução estável e com um mínimo de legitimidade, agora grande parte das eleições – com a óbvia exceção da de Emmanuel Macron, em França – acabam por tornar o xadrez parlamentar ainda mais confuso e conflituoso. As divisões são acentuadas pelos resultados eleitorais e, como consequência, cada lado tenta reforçar ainda mais essa clivagem, como forma de ganhar dividendos para o futuro.
O ano que agora termina vincou ainda mais essa era de clivagens em que mergulhamos há algum tempo. Nos Estados Unidos da América, dizem os analistas, para encontrar um período em que se tivesse visto a nação assim tão dividida é preciso recuar aos tempos da guerra civil. Na Alemanha, três meses depois das eleições, continua a não existir uma solução governativa em Berlim – mas se isso pode ser considerado surpreendente para os germânicos, não difere muito, na realidade, daquilo que já aconteceu, recentemente, na Bélgica e em Espanha. E este tempo de clivagens, provocadas e alimentadas muitas vezes por campanhas negras, ódios militantes e jogos sujos com recurso a fake news, tem provocado também uma deriva autoritária em diversos países da União Europeia, em que a Polónia é o mais flagrante (e perigoso) exemplo. E também é essa era de clivagens que ajuda a explicar, no fundo, os devaneios ditatoriais na Venezuela, Turquia e Filipinas.
Apesar deste panorama, é possível e, acima de tudo, desejável, encarar o ano que agora se inicia com algum otimismo. Perceber, por exemplo, que este exacerbar de clivagens que varre, por vezes cegamente, o mundo pode, afinal, trazer alguns benefícios e vantagens, e permitir um outro olhar dos eleitores perante os eleitos. Pode ajudar, por exemplo, a separar as águas e a tornar tudo bem mais claro e à vista de todos: foi assim que o “vírus” Donald Trump que, há um ano, ameaçava fazer alastrar o populismo na Europa acabou por se transformar numa “vacina”, extremamente eficaz para derrotar os candidatos racistas e xenófobos que se apresentaram nas urnas.
Para o bem e para o mal, acabou o tempo das falinhas mansas e da política “pronta-a-vestir”, em que todos tentavam sobreviver, repetindo, na essência, o mesmo discurso. Agora isso deixou de ser aceitável e todos se sentem comprometidos a dar, de facto, a sua opinião. Bem como a responsabilizarem-se por ela. Essa, sinceramente, pode ser uma boa notícia: significa que pode ter terminado, finalmente, a tolerância à mentira. E que podemos começar a entrar na era da clarificação – sem truques, nem planos ocultos. Mas sim com cada um a apresentar-se por aquilo que realmente vale: o seu trabalho, as suas ideias, as suas visões para o futuro. O otimismo não é apenas uma arte, mas também uma necessidade.
(Editorial da VISÃO 1295 de 28 de dezembro)