Os últimos dias fizeram-me regressar aos bancos da Universidade de Direito de Lisboa, mais precisamente ao enorme Anfiteatro 1 onde semanalmente ouvia, com interesse genuíno, o professor da cadeira de Direito Constitucional. Confesso que era das poucas disciplinas a que assistia com devoção quase religiosa, porque aquele orador me fascinava. Chegava sem notas nem livros, e abria o calhamaço que trazia na cabeça: o dom da palavra, misturado com a argúcia, o malabarismo na argumentação, as histórias reais e o conhecimento profundo da doutrina, deixavam encantado qualquer aluno do primeiro ano que gostasse de política.
Aquele professor de Direito Constitucional é hoje o Presidente da República, e pelo que conheci dele nesta altura, pouco me tem espantado. Como se aquela Faculdade fosse um microcosmos de um país e aquele professor já um Presidente em potência. A caminhada para a chefia do Estado feita de mediatismo nato e de afetos, a simplicidade no trato, o arrojo em quebrar regras e protocolos, estava lá tudo há quase 25 anos. Numa casa de tradição, costumes e algum bafio como a Clássica, Marcelo, informal, caloroso e popular, era um herói para os miúdos que ali aterravam. Podíamos, por exemplo, aspirar a ter mais de 14 se nos saíssemos bem num exame – ele era o único professor que afrontava a enraizada tradição das notas baixas. A exigência, porém, também lá estava. Naquele Anfiteatro 1, não perdia a oportunidade para puxar as orelhas em público aos alunos que não dessem o litro. Gostava de corrigir alguns testes pessoalmente, e distribuí-los na aula com pompa e circunstância, atirando “bocas” certeiras que faziam o gáudio da assistência e o vexame dos visados. Pior do que ter uma má nota, era ter uma má nota e uma repreensão pública do Professor.
Foi com ele que aprendi que o regime misto parlamentar-presidencial inscrito na nossa Constituição é uma especificidade portuguesa fascinante, que impõe uma interdependência institucional. Um sistema de freios e contrapesos, ao melhor estilo de Montesquieu e James Madison, em que cada um tem poderes específicos, mas depende do outro para uma série de procedimentos, e onde todos se fiscalizam mutuamente.
Foi também com ele que aprendi que este semipresidencialismo é tão “semi” quanto o quiser ser o Chefe de Estado eleito. A função de direção política presidencial inerente ao cargo devia ser entendida cum grano salis, lembro- -me de ouvir dizer. Recorro às minhas anotações feitas à mão na Constituição: se o Presidente não governa, a verdade é que tem “funções politicamente conformadoras”. E, mais do que o que está inscrito nos textos constitucionais, será a prática a dizer em que medida e com que intensidade elas serão exercidas. Cabe a cada um escolher se quer ser decorativo e apagado (uma espécie de notário do Estado) ou fiscalizador e interventivo no desempenho do seu papel. E Marcelo, o Professor de então e o Presidente de hoje, é pouco talhado para um papel apagado de “semi seja o que for”. As teorias de alguns de benevolência cega com esta solução governativa estavam, claro, completamente erradas: apoio e sorrisos, sim, mas só enquanto andarem na linha. À primeira falha grave, como se viu, o afetuoso Marcelo foi implacável: puxou as orelhas e apontou o caminho. E não hesitará em fazê-lo de novo se António Costa se desviar da rota. Habituem-se.
(Editorial publicado na VISÃO 1286, de 26 de outubro de 2017)