Ainda alguém duvida de que as eleições fazem bem? É só pensar no ambiente que se vivia antes das legislativas de 4 de outubro e das presidenciais de 24 de janeiro. Estava tudo zangado, as reuniões eram crispadas e ninguém acreditava verdadeiramente em consensos ou aproximações.
António Costa abriu aos partidos à sua esquerda e Jerónimo de Sousa não lhe fechou a porta na cara. Catarina Martins já a tinha entreaberto. Nasceu uma geringonça que, dia a dia, foi mostrando maior consistência (veremos se assim continua), a ponto de ter obrigado a mudar os discursos de quem previa vida curta para a caranguejola. Os discursos de Assunção Cristas deste fim de semana (quase em consonância com o PS na questão do governador do Banco de Portugal, além do convite ao diálogo em matéria de pensões) mostraram que onde havia crispação há hoje piscares de olhos. Só o PSD, à espera do congresso de abril, parece manter-se no rumo que trazia (mas sempre foi possível evitar o problema criado com o apoio à Grécia e à Turquia).
Agora que os solistas partidários estão mais abertos à colaboração e que a batuta de Belém passou para as mãos de um maestro mais harmonioso, onde há meses apenas se ouviam notas dissonantes começa agora a escutar-se alguma afinação. Aqueles que só anunciavam dissidências entre os naipes da orquestra mudaram de tom. Até já admitem que a tournée seja prolongada.
Será que tudo isto vai permitir atuações mais ao agrado da plateia? Veremos se a vida dos espectadores melhora. O que não há dúvida é que o concerto é maior.
Ele, visto por ele próprio – As histórias têm sempre mais do que um lado. Entre os relatos, os menos independentes serão, certamente, os que constam das autobiografias. Seria preciso um enorme espírito crítico e uma capacidade sobre-humana de distanciamento para alguém conseguir contar com desprendimento e isenção a vida que viveu. Principalmente se esse alguém tem contas a ajustar com a sociedade, se considera que foi maltratado e alvo de profunda injustiça, não é de esperar que escreva sobre si como faria se a personagem lhe fosse distante.
Vem isto a propósito do tema de capa que escolhemos para esta edição: um trabalho sobre o livro em que Carlos Cruz conta parte da sua vida. O alerta justifica-se não por Carlos Cruz ser um narcisista, mas porque quem escreve sobre si não o faz de forma independente.
Carlos Cruz construiu, até ao processo da Casa Pia (a que este primeiro livro de memórias não chega), uma imagem de unanimidade. Ele era o bom português, foi o senhor dos euros – ajudou a trazer o Euro 2004 para Portugal e apresentou aos portugueses a moeda que entrou em circulação em 2002 – e a sua imagem estava reproduzida em tamanho natural, nas agências de um grande banco, para dar as boas-vindas aos clientes. Irradiava simpatia e sempre que aparecia era sucesso garantido.
Um dia deixou o País atónito. As opiniões dividiram-se entre os que não lhe perdoaram os crimes pelos quais foi condenado e os que nele viram a prova de que a Justiça erra. Interrogam-se uns: “Quem acredita que aquele homem alinhasse em práticas de pedofilia?” Contrapõem outros: “Como é possível estar inocente e ter sido acusado e condenado por tantos magistrados?” A dúvida vai arrastar-se. A forma como o caso se discute é a prova de que o País não fica, ainda agora, indiferente perante o senhor televisão, o homem do Zip Zip, da Bota Botilde e dos relatos de futebol, do PBX ou do Pão com Manteiga. E da Casa Pia.
O que hoje publicamos é baseado na forma como ele se vê e quer ser visto. Ou não resultasse da sua autobiografia. É isso que aqui fica para que cada um possa fazer a sua leitura. Ele conta-se assim. Diga o leitor como o vê.