As publicações do grupo Cofina, entre as quais o Correio da Manhã, a CM TV e a Sábado, consideram-se impedidas de publicarem informações sobre o caso de José Sócrates – por decisão judicial. Uma providência cautelar ontem conhecida decreta que estão proibidos de “editarem, publicarem ou divulgarem (…) quaisquer elementos de prova” do Processo Marquês, “designadamente (mas não exclusivamente), despachos e promoções do Ministério Público, documentos, despachos, decisões das autoridades judiciárias competentes e transcrições ou o teor de conversas alvo de interceções telefónicas, através de qualquer um dos seguintes meios de comunicação social”.
Que me recorde, houve três decisões em Portugal que visaram travar publicações. Uma que impediu a venda de uma revista contendo imagens íntimas de um conhecido arquiteto, uma outra contra o semanário SOL para não divulgação de escutas do processo Face Oculta e uma terceira visando o livro de um ex-inspetor da Judiciária, que continha acusações contra os pais de Maddie, a criança desaparecida no Algarve. Nenhuma tão extensa, portanto.
A decisão conhecida esta semana tem uma diferença substancial: abrange não um jornal,mas todo um grupo. Coisa estranha, tendo em conta que os vários órgãos têm diferentes redações, diferentes direções, podem mesmo ter diferentes estatutos editoriais. Partilham as administrações e essas não têm (ou não deveriam ter) responsabilidades editoriais. Só pela dimensão da proibição se afere já da gravidade da decisão judicial.
De uma forma que apenas pode ser considerada intimidatória, vem reforçar a proibição e o castigo sobre o que já está proibido e é punível. Divulgar despachos, decisões, escutas, etc, já estava interdito. A providência agrava as penas, através de multas e apreensão das publicações, e, ao contrário da restante legislação, que impõe punição para quem incumpre, vem impor intervenções antes de qualquer julgamento. Estabelece que “sejam retirados de circulação pela Requerida Cofina Media, SA e entregues neste tribunal, no prazo de três dias, todos os exemplares de qualquer edição impressa do jornal Correio da Manhã que contenham quaisquer elementos de prova constantes” do inquérito em causa, “designadamente, despachos e promoções do Ministério Público, documentos, despachos, decisões das autoridades judiciárias competentes e transcrições ou o teor de conversas alvo de interceções telefónicas”.
Ou seja, a providência vem tornar bem mais gravosa qualquer infração ao chamado Segredo de Justiça, uma situação que não pode deixar de ser considerada como um agravamento das restrições à liberdade de informação. Quando se reclama por transparência, esta decisão vai no sentido contrário. Mais, e aparentemente – à boa maneira portuguesa, muito debate jurídico vai correr antes de haver consenso sobre a legalidade, extensão e importância da decisão –, interdita a publicação de peças processuais produzidas por tribunais superiores e talvez mesmo comunicados da Procuradoria-Geral da República e que seriam de publicação lícita.
O que este caso vem claramente mostrar é que não adianta adiar o debate e a tomada de decisões sobre o Segredo de Justiça e a forma como a Justiça e a Comunicação Social, nos tempos que correm, têm de relacionar-se. Há anos que um PGR defendeu o fim do Segredo Justiça (por incompatibilidade de o assegurar), a atual Procuradora iniciou o mandato estudando o assunto, mas nada mudou, e a classe política limita-se a fazer acalorados protestos quando são os seus amigos que estão na ribalta.
É óbvio que um caso de um ex-primeiro-ministro preso não pode estar um ano sob segredo, um secretismo aqui e ali interrompido por ineficazes comunicados do Ministério Público ou do juiz de Instrução e que apenas vêm dizer o que toda a gente já sabe e nada esclarecem.
A Justiça tem de saber abrir-se, mostrar-se, esclarecer, aprender a trabalhar sem ser na sombra. Os jornais têm de ser responsabilizados pelo que publicam.
Um dos pontos a esclarecer é a questão de os jornalistas, ou de alguém por eles, se constituírem como assistentes nos processos para a eles terem acesso – uma prática já com alguns anos e cada vez mais adeptos. Façam-se as juras que se fizerem, é óbvio que os meios de comunicação que usam esta via para chegar aos processos não o fazem para memória futura. Estão lá – direta ou indiretamente representados – para espreitar pelo buraco da fechadura, com todas as cautelas, tentando não ser apanhados. Como sempre, quando não se está de consciência tranquila. E a informação recolhe-se e confronta-se sem subterfúgios, salvo raríssimas exceções.
Os abusos de jornais e jornalistas justificam excessos dos tribunais? Claramente não. Mas abrem-lhes as portas.
Dramático é que não se vê, em qualquer dos partidos políticos, coragem de pegar nestas matérias e de as repensar – e há muito que repensar na Justiça e nas suas relações com a sociedade. Há anos que o Segredo de Justiça (e as constantes referências a alegados desrespeitos) é motivo de chacota na sociedade. Há anos que advogados, procuradores, juízes e jornalistas e comentadores trocam acusações sobre estas matérias como se houvesse classes inocentes. Há anos que se deve perceber que, na era dos jornais digitais e da instantaneidade, a tranquilidade e o tempo de reflexão necessários à prática da Justiça têm de ser acautelados de novas formas. Que passam, seguramente, por esclarecer o mais possível e por uma aposta na transparência nos processos. Passam pelo fim da arrogância entre magistrados e pela ética nos jornalistas e jornais.