Um dos temas sobre os quais mais escrevi ao longo de stes últimos quatro anos foi o tema da alteração da estrutura do poder em Portugal. Insisti na tecla por duas razões básicas. Porque para perorar sobre política económica despontaram entretanto em Portugal milhares de especialistas, mas sobretudo porque me parece que continua a não fazer-se uma reflexão profunda sobre o fenómeno no nosso país. Volto portanto, com as devidas desculpas pela insistência maníaca, ao tema.
Há um lado luminoso na revolução que se operou em Portugal ao longo dos últimos anos. O País anterior ao ajustamento, o País herdado dos vários anos de prosperidade aparente, o País “financeirizado” das últimas duas décadas, era, percebe-se agora cristalinamente, um país inebriado por uma ilusória sensação de riqueza que se deixou aprisionar, económica e socialmente, por uma suposta elite que, já não coincidindo exatamente com a “casta” reinante do antigo regime, a integrou e a misturou eficazmente com um novo tipo de empresários de sucesso fácil e construído em cima do fenómeno da complexificação opaca do mundo financeiro. Sei que exagero conscientemente no tom. E não quero sugerir que não há alguns bons exemplos de empresariado sério que construíram a pulso histórias de sucesso. O ponto é que não terá sido essa, infelizmente, a regra. A débacle do grupo GES veio aliás acabar com as dúvidas dos mais céticos e pôs definitivamente a nu um mundo sinistro de interesses cruzados entre política e economia, entre a banca e empresas fantasma, entre decisores políticos e gestores que, durante mais de vinte anos, foram a encarnação viva daquilo a que nos habituámos a chamar sucesso.
A riqueza, sabe-se agora, tinha pés de barro, o poder funcionava em circuito fechado, as grandes decisões estavam todas à distância de um telefone vermelho. Mais relevante, esta pequeníssima “elite” protegia-se, fechava-se sobre si mesma, vedava o acesso do comum dos mortais ao circuito restritíssimo do verdadeiro poder.
O colapso desse mundo profundamente injusto tem no atual governo um dos seus protagonistas maiores. E fica sobretudo a crédito do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho que, estou hoje convencido, alimentou deliberadamente este projeto de transformação do poder em Portugal.
Acontece que esta não é só uma história cor-de-rosa. Acontece que este processo tem um lado sombrio. Por inépcia, por ignorância ou porque a urgência financeira se sobrepôs a todo o tipo de considerações estratégicas, o poder que vemos hoje nascer das cinzas deste Portugal que já era fica frustrantemente aquém da promessa “revolucionária” que o seu fim encerrava.
Gostava de dizer que olho para o País onde os meus filhos vão crescer e vejo um Portugal que resgatou a honradez e a ética para o centro da vida política e económica. Gostava de dizer que o processo de privatizações dos últimos anos estilhaçou a concentração dos centros de poder económico, cortou as amarras com a política e abriu caminho a uma verdadeira economia do mérito, da oportunidade e do trabalho. Gostava de dizer que importámos culturas empresariais diversificadas e que são um exemplo do tipo de sociedade que queremos deixar em legado aos nossos filhos. Gostava de dizer que os vários casos de justiça que abalaram o País nos livraram de todos os homens das malas e de todos os facilitadores que nos trouxeram até aqui. Que nem só as moscas mudaram.
Dir-me-ão que é cedo para fazer um balanço final. E é provavelmente verdade. Mas não gosto do que vejo e não será por mera comodidade que deixarei de dizê-lo.