Mãe, sente-se aqui ao meu ladinho, era uma das frases preferidas do meu filho quando era pequeno. Gostava de adormecer com a cara em cima da minha mão. Sentava-me no chão junto à cama e esperava pacientemente que os seus maravilhosos olhos azuis se fechassem e mergulhasse num sono profundo e pacificado. Uma dezena de anos mais tarde, contou-me que sentia a minha mão a deslizar suavemente e reprimia a vontade de se mostrar ainda acordado porque era já tarde e sabia que eu estava cansada.
Foi assim durante toda a infância até chegar à adolescência, período durante o qual os pais se vêm obrigados e negociar todos os dias com os filhos. Costumo dizer que a adolescência começa no dia em que os vamos buscar à escola e quando e tentamos dar-lhes um beijo, eles encolhem-se e dizem aqui não, mãe. Quando isso acontece, inicia-se uma nova fase à qual os brasileiros, na sua infinita criatividade linguística, chamam aborrescência. Os adolescentes são pessoas diferentes todos os dias, quase todos os dias chocam de frente com a parede, e a parede somos nós. Durante esses anos, fizemos um trato: todos os dias, ao acordar e antes de dormir, dávamos um abraço. Mesmo que tivéssemos tido um dia difícil entre mãe e filho, os abraços não podiam falhar. E não falharam.
A adolescência passou e o ritual dos abraços eternizou-se. Há dias em que o meu filho decide dar-me mais um abraço, se sentir que estou preocupada ou angustiada, ou então prolongar aquele abraço da despedida. Fechamos os dois os olhos e por breves instantes, somos só um ser. Eu sinto a oxitocina a libertar-se de todas as minhas células e é como se carregasse a minha pilha de bem-estar durante 24 horas.
Esta mania dos abraços é um hábito que venho instituindo ao longo dos anos com amigos e pessoas de quem gosto muito. A minha médica do coração que está neste momento na frente de batalha como toda a classe médica, por exemplo. Nunca fomos amigas de ir jantar fora, mas sempre que vou à consulta para ver se a peça no coração continua no lugar, damos um abraço, acompanhado por um sorriso afetuoso. Ela diz-me continue a escrever romances para eu ler nas férias e eu respondo, um médico faz muitos mais falta do que um escritor. Gosto muito dela porque há muitos anos que ela salva muitas vidas. É muito bonita, magrinha, loira e elegante, parece saída de um episódio da Anatomia de Grey.
E agora, como fazemos para abraçar aqueles que amamos? Com os pais confinados em casa, não podemos abraçá-los. Amigos e namorados ou maridos, também não é evidente. E os filhos, como fazemos com os filhos, sobretudo se forem pequenos? Como lhes explicamos que não é prudente, porque podem ser portadores do vírus que provocou a maior pandemia mundial da era moderna, para a qual a vacina é ainda uma ténue miragem? Como podemos continuar as nossas vidas com a distância recomendada, com alguém da família prisioneiro num dos quartos, deixando comida à porta da casa dos nossos pais e tios e vizinhos que tanto estimamos sem nos sentirmos estranhos?
Todos os dias sinto saudades de abraçar o meu filho e as minhas sobrinhas. Todos os dias penso no meu sobrinho que vive em Londres, qualquer dia faz anos e ainda ninguém sabe se poderá viajar para Portugal nessa altura e se poderemos abraçá-lo.
De repente o mundo mudou e os abraços tornaram-se num dos bens mais preciosos da humanidade, porque têm um preço, suportam um risco, e ainda assim, são de um valor incalculável.
Por trabalhar em casa há vinte anos e estar habituada a atravessar semanas de silêncio e de recolhimento por causa do meu trabalho, o autoisolamento não me custa. Aplico diariamente à minha realidade a teoria do copo meio-cheio, que no meu caso é quase cheio: O meu filho está seguro. Os meus pais, irmãos, cunhados e sobrinhos também estão. Tenho a dispensa e o frigorifico cheios e hoje até consegui comprar um quilo de morangos, a minha fruta preferida. Posso continuar a escrever e as pessoas podem continuar a ler-me. É provável que poucas pessoas tenham tanta sorte como eu. Penso nos médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem e funcionários de hospitais, paramédicos, bombeiros, agentes da PSP, da GNR, militares, penso nos trabalhadores que recolhem o lixo, nos farmacêuticos, nos empregados de supermercados e de bombas de gasolina que estão a atender centenas de pessoas todos os dias, eles não podem recolher-se. Eu posso.
Nestes tempos extraordinários que atravessamos, vamos ouvir muitas histórias de heróis anónimos. Em momentos de clivagem, o bom e o mau ficam mais nítidos, não há espaço nem tempo para zonas cinzentas. Cada um deve dar o seu melhor e treinar a paciência e a resiliência. Sim, isto vai passar, sim, vamos voltar a abraçar os nossos pais e os nossos filhos, sim, esta pandemia vai alterar para sempre a nossa realidade e vamos passar a dar mais valor a tudo o que o dinheiro não pode pagar: ao mimo, ao tempo, ao afeto, à amizade, à solidariedade e ao amor. Amor por nós mesmos, pelo próximo, pela família, pelos amigos de sempre e pelos novos que a vida nos traz.
E quando tudo passar, vamos poder voltar a dar abraços e a sentar-nos ao ladinho de quem mais amamos para partilhar histórias e segredos e resgatar todos os abraços acumulados. Até lá, usem a memória e a imaginação, pratiquem a generosidade e a solidariedade, oiçam os outros e tenham calma.
Nada é uma questão e vida ou de morte a não ser a própria morte.